Um pedido de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito adiou, ontem (12), o julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de três processos em que se discute a prisão civil por dívida. Os processos haviam sido levados de volta ao plenário pelo ministro Celso de Mello, que deles pedira vista em 2006 e 2007. Em um dos processos, oito ministros já se declararam contra a prisão civil por dívida do depositário infiel.
Trata-se dos Recursos Extraordinários (RE) 349703 e 466343, além do Habeas Corpus (HC) 87585. Nos REs, em processos contra clientes, os bancos Itaú e Bradesco questionam decisões que entenderam que o contrato de alienação fiduciária em garantia é insuscetível de ser equiparado ao contrato de depósito de bem alheio (depositário infiel) para efeito de prisão civil.
O mesmo tema está em discussão no HC 87585, em que Alberto de Ribamar Costa questiona acórdão do STJ. Ele sustenta que, se for mantida a decisão que decretou sua prisão, “estará respondendo pela dívida através de sua liberdade, o que não pode ser aceito no moderno Estado Democrático de Direito, não havendo razoabilidade e utilidade da pena de prisão para os fins do processo”. E fundamenta seu pleito na impossibilidade de decretação da prisão de depositário infiel, à luz da redação trazida pela Emenda Constitucional 45, de 31 de dezembro de 2004, que tornou os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos equivalentes à norma constitucional, a qual tem aplicação imediata, referindo-se ao pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.
Mudança de posição
Em voto de quase duas horas que proferiu na sessão, o ministro Celso de Mello mudou posição que defendia anteriormente sobre a questão, posicionando-se contra a prisão civil por dívida, prevista no artigo 5º, inciso LXVII, da Constituição, como medida excepcional para o depositário infiel, ao lado da prisão por inadimplemento voluntário das obrigações referentes à pensão alimentícia.
Neste contexto, o ministro ressaltou votos que o ministro Marco Aurélio vem proferindo há tempos contra a prisão do depositário infiel, qualificando-os como precursores de uma nova mentalidade que está surgindo no STF no julgamento de casos semelhantes.
Tratados e convenções proíbem a prisão por dívida
Em seu voto, Celso de Mello lembrou que o Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil em 1992, proíbe, em seu artigo 7º, parágrafo 7º, a prisão civil por dívida, excetuado o devedor voluntário de pensão alimentícia. O mesmo, segundo ele, ocorre com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, patrocinado em 1966 pela Organização das Nações Unidas (ONU), ao qual o Brasil aderiu em 1990. Em seu artigo 11, ele dispõe: “Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”. Até a Declaração Americana dos Direitos da Pessoa Humana, firmada em 1948, em Bogotá (Colômbia), com a participação do Brasil, já previa esta proibição, enquanto a Constituição brasileira de 1988 ainda recepcionou legislação antiga sobre o assunto.
Também a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena (Áustria), em 1993, com participação ativa da delegação brasileira, então chefiada pelo ex-ministro da Justiça e ministro aposentado do STF Maurício Corrêa, preconizou o fim da prisão civil por dívida. O ministro lembrou que, naquele evento, ficou bem marcada a interdependência entre democracia e o respeito dos direitos da pessoa humana, tendência que se vem consolidando em todo o mundo. Tanto isso é verdade, segundo ele, que, hoje, os Estados totalitários se confundem com o desrespeito aos direitos humanos. E o Brasil, ao subscrever a declaração firmada no final da mencionada conferência, abriu, inclusive, a possibilidade de cidadãos brasileiros, que considerarem desrespeitados os seus direitos humanos, recorrerem a cortes internacionais, o que já vem ocorrendo.
O ministro invocou o disposto no artigo 4º, inciso II, da Constituição, que preconiza a prevalência dos direitos humanos como princípio nas suas relações internacionais, para defender a tese de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, mesmo os firmados antes do advento da Constituição de 1988, devem ter o mesmo status dos dispositivos inscritos na Constituição Federal (CF). Ele ponderou, no entanto, que tais tratados e convenções não podem contrariar o disposto na Constituição, somente complementá-la.
A CF já dispõe, no parágrafo 2º do artigo 5º, que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
O ministro Gilmar Mendes discordou parcialmente desse aspecto do voto de Celso de Mello, para defender o disposto na Emenda Constitucional 45/2004, que acrescentou um parágrafo 3º ao artigo 5º da CF para dispor que esse status (a equiparação a dispositivo constitucional) somente será alcançado se o Congresso Nacional ratificar o respectivo tratado ou convenção, por votação em dois turnos, com maioria de dois terços.
Ainda em seu voto, Celso de Mello deixou claro que não atribui aos demais acordos e tratados internacionais, por exemplo os que versem sobre comércio, status igual àqueles que versem sobre direitos humanos. Para estes, ele defende, sim, a necessidade de ratificação pelo Congresso, nos termos previstos na EC-45.
Cezar Peluso reiterou hoje sua posição sobre o tema. “O que se tem hoje como direito posto é a inadmissibilidade da prisão do depositário, qualquer que seja a qualidade desse depósito”, disse ele, que é relator de um dos processos em julgamento, o Recurso Extraordinário 466343. “Já não é possível conceber o corpo humano como passível de experimentos normativos no sentido de que se torne objeto de técnicas de coerção para cumprimento de obrigações estritamente de caráter patrimonial”, afirmou. A única ressalva feita por ele foi quanto ao inadimplente de pensão alimentar.
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