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Saulo Ramos profere discurso de abertura no Congresso Brasileiro de Controle Público

11/12/2008 | 10326 pessoas já leram esta notícia. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Íntegra do discurso proferido pelo advogado e ex-ministro da Justiça Saulo Ramos na abertura do I Congresso Brasileiro de Controle Público, em Salvador, dia 10 de dezembro de 2008:

Tenho de sucumbir à realidade. Estou chegando aos  oitenta anos de idade e não consigo evitar a tentação dos idosos: falar  de doenças. Acabo de ser submetido a uma cirurgia. Extraíram um câncer de minha corda vocal. Falei em demasia durante a vida. Agora resta-me dizer pouco para conforto geral: meu e dos que terão a paciência de ouvir-me. Ao menos a invocação desta patologia tem relação de pertinência com palestras e conferências.

Nesse Congresso muito se debaterá o controle público em todas as dimensões e setores, formas e dosagens. Creio não ser preciso esforçar-me neste assunto. Outros juristas, tantos e melhores o farão, como daqui a instantes usufruiremos as lições do Professor Manoel Jorge e Silva Neto e desse ícone dos advogados o professor Sérgio Ferraz.

Limito-me à sensação de dever cumprido quando recordo ter criado a Advocacia Consultiva da União, harmonizando os serviços jurídicos de todos os Ministérios, autarquias e empresas estatais. Inauguramos o controle sistêmico das atividades públicas sujeitas, e todas o estão, à disciplina legal e à correta aplicação do direito.

Foi o embrião para a Advocacia-Geral da União, instituída pela constituinte de 1988 graças a um trabalho conjunto que os advogados públicos daquela época e eu desenvolvemos para persuadir nossos parlamentares. A idéia, como sempre, foi violentamente combatida, chamada de trem da alegria, de “cabidão” de empregos. Mas conseguimos.

A segunda resistência veio depois contra a criação da  carreira do advogado da União. Não sei quantas vezes foi reeditada a medida provisória que a criava e estruturava as respectivas carreiras de advogado público. Dezenas de vezes. Eu já havia voltado ao ministério privado, mas tinha notícias  através do quase  enlouquecido Geraldo Quintão.

Enfim, a AGU nasceu e agora completa quinze anos. E nada tem de debutante. É uma senhora instituição de eficiência e, sobretudo, de independência dos governos, apenas subordinada aos princípios sagrados do direito. Notável foi o serviço por ela prestado ao país conduzindo com serenidade e competência a vida jurídica que circula nas artérias da União. Postou-se imperturbavelmente ao lado do direito e sua ciência, não se deixando levar pelas diferentes, várias e, às vezes péssimas, influências políticas dos governos que se sucedem no nosso endoidecido sistema eleitoral.

No Estado de Direito e no atual estágio da cultura brasileira, parece-me que, dentre as grandes instituições, apenas três  conseguem subsistir e funcionar sem influência política partidária: o Supremo Tribunal Federal, o Banco Central do Brasil e a Advocacia-Geral da União.

Tem sido estarrecedor para nós, que acreditamos na disciplina e na ordem jurídica, e, portanto, no controle dos atos públicos, assistir espetáculos como os da polícia federal dividida em facões que se agridem mutuamente, e assistir os embates entre a Polícia Federal e a ABIN, com busca e apreensões de computadores e documentos desta agência da Presidência da República que, presumivelmente, deve lidar com assuntos sérios e reservados de interesse exclusivo do Governo.

E o Governo não diz nada. Pior: não faz nada.
Lutam seus agentes uns contra os outros em arenas abertas oferecendo um deplorável espetáculo de gladiadores raivosos para gáudio da imprensa, que se delicia com a degradação da autoridade pública. Essa é a primeira imensa tristeza.

De um editorial da Folha de São Paulo, publicado no dia 21 de novembro passado, extraí este trecho:

“De fato, é inaceitável que a Abin seja alvo de intrusões da Polícia Federal. Mesmo no caso de uma nação de tradição pacífica como o Brasil, é preciso sustentar um serviço de inteligência e contra-espionagem -para questões de natureza econômica e ambiental por exemplo- de caráter reservado, embora sujeito a prestações de contas a comitês parlamentares.

Mas as distorções suscitadas por esse caso são generalizadas. Antes de ter escritórios invadidos, o descontrole da Abin permitiu que 60 de seus agentes, lotados na sede e noutros 11 birôs regionais, participassem de uma investigação da Polícia Federal, a chamada operação Satiagraha. Como se não bastasse tamanho abuso -agentes da Abin não podem exercer função policial-, ainda pesa sobre servidores ligados seja à Abin seja à PF a suspeita de terem realizado escutas telefônicas ilegais.

A guerra de grupos ganhou vida própria a partir das entranhas de duas poderosas instituições federais. Os ministros que ocuparam a pasta da Justiça na gestão Lula nada fizeram para interromper a balcanização da Polícia Federal. Já passa da hora de o presidente da República restabelecer a autoridade do governo sobre as duas repartições.”

Isso grita e nos arrasta à segunda e imensa tristeza.
Desse mesmo jornal, a agência Data Folha divulgou pesquisa que informa estar o Presidente Luiz Ignácio Lula da Silva com 70% de apoio popular. É um prestígio historicamente inédito e creio que Sua Excelência poderia servir-se dessa imensa popularidade para começar a governar, para assumir a responsabilidade de dirigir o país. Do contrário e apenas com discursos diários poderá perder esse inigualável prestígio se fugir dessa responsabilidade, se fulminar esse momento, se fugaz deixar passar esse instante que lhe deram o destino e a história.

Vejam  a querela provocada por dois Ministros de Estado, o da Justiça e o dos Direitos Humanos, contra a defesa que a Advocacia Geral da União apresentou em processo judicial debatendo os efeitos da lei de anistia.

Deus meu! As paixões políticas ideológicas ousaram proclamar publicamente que exigiriam a retratação dos advogados da União, sob o argumento de que o crime de tortura não prescreve e de que a lei de anistia tem que ser revista.

Outros grandes juristas, em posições ideológicas opostas,  levantam a voz para dizer que o crime de terrorismo também não pode ser objeto de prescrição.

Não foi inútil minha invocação de lutas de gladiadores para espetáculos públicos deprimentes aos olhos da civilização de hoje. Foi em Roma, em uma de suas muitas batalhas militares, que nasceu o erro crasso. Entre nós, ambos os lados dos apaixonados gladiadores, incorreram em erros crassos.

Esse pouco edificante espetáculo, que assistimos agora no Brasil de hoje,  não é debate jurídico. É bate-boca de boteco. E no boteco entrou até Manfred Nowak, relator da Onu para a tortura, especialmente convidado para tomar uma cachacinha brasileira e entrar na discussão sobre os fatos ocorridos no Brasil a partir de 1960. Não nos disse nada sobre Guantânamo em Cuba ou Abu Ghraib em Bagdá, fatos de agora e ainda não resolvidos.

Foi Rui Barbosa, filho ilustre desta terra onde hoje estamos reunidos, quem nos ensinou: fora do direito não há salvação.
Nosso Estado de Direito tem uma Constituição e esta nossa lei fundamental somente considera dois crimes imprescritíveis: o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado de Direito ( art. 5o , incisos XLII e XLIV).

Enunciados de tratados internacionais podem constituir preceitos de lege ferenda, mas antes de passar pelo nosso processo legislativo não têm qualquer eficácia em nosso território. E não devemos esquecer de que a matéria, pela relevância institucional de que se reveste, tem que ser tratada em nível constitucional e que, portanto, estariam os tratados sujeitos a aprovação pelo quorum qualificado de dois terços no Congresso Nacional em duas votações em ambas as casas.

Se isto não aconteceu, a afirmação de que tortura e terrorismo são imprescritíveis no Brasil autoriza-me a invocar a célebre exclamação de Antolisei para outra situação, mas aplicável também neste caso:  “costituisce, più che un’eresia, una bestemmia giuridica.”

A defesa da União foi proferida em processo movido por vítimas de tortura, ou seus descendentes, contra o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório militar que, durante a ditadura, comandou o centro de torturas em S. Paulo, chamado Operação Bandeirantes. Esse coronel tinha o dódinome de Dr. Tibiriçá.

Naquele tempo eu advogava para as vítimas do regime de exceção, os qualificados como subversivos e comunistas. Recebi várias ameaças dos agentes da ditadura, ou pelo telefone, ou levando violentas trombadas na rua de uns brutos-montes que me acusavam: “Você vai se arrepender de advogar para os comunistas.”

A Operação Bandeirantes, OBAN, era composta por militares, policiais civis, e membros de facões políticas direitistas. Grandes empresários de São Paulo a financiavam. Se formos rever aqueles atos infamantes ninguém deve ficar de fora.

Um dia esse Dr. Tibiriçá mandou prender meu irmão, cujo único crime era ser irmão do advogado que defendia comunistas e subversivos. Apanhou, sofreu e saiu de lá com um recado: “avise seu irmão que um dia chegará a vez dele”. Não me intimidei. Continuei advogando. Claro que tive raiva e hoje, que já perdi meu irmão, uma das grandes dores da minha vida, a lembrança de coronel Ustra causa-me arrepios de repulsa.

Meu sentimento pessoal, porém, não pode interferir no raciocínio jurídico. Este é o motivo que me faz deixar aqui minha inteira solidariedade ao comportamento técnico e correto da Advocacia-Geral da União naquele caso judicial. Quero registar, na pessoa do Ministro José Antônio Toffoli, meu apoio a todos os advogados da União e sobretudo àqueles que afastaram a política ideológica no caso da lei de anistia. Agiram como doutores em direito. A questão foi levada para o Supremo Tribunal Federal e lá certamente será confirmada a tese defendida pela AGU.

Abordei, na abertura desta palestra, apenas alguns aspectos que demandam o controle público em alguns atos da maior significação para nossas instituições. Apenas alguns.  Vejam a importância deste Congresso! Aqui serão debatidos tantos e tantos aspectos da ordem pública, da moralidade e da legalidade, que emanam da lei mas dependem imprescindivelmente do controle diário, atento, rigoroso, dos agentes públicos, sobretudo de seus advogados. E dependem da legítima autoridade que professarem.
Com isso teremos, no exercício pleno das liberdades democráticas, a necessária e imprescindível concreção da autoridade pública, única forma de assegurarmos ao país o convívio disciplinado de uma nação política e juridicamente organizada, e devotada aos seus valores morais e sociais.

Refiro-me não à autoridade truculenta, arbitrária, a perfilada, alimentada na força e no abuso de poder, ou na ignorância da forma de exercê-lo pela egolatria e pela vaniloquência enganosa, mas a autoridade serena a serviço da legalidade, aquela que cultiva o direito e os direitos como profissão de fé, a autoridade moral do exemplo, a autoridade da intransigência com a corrupção e com a desordem, a autoridade da sabedoria inspirada no bem comum e no amor verdadeiro às instituições e ao povo que elege nossos dirigentes para governarem com estas qualidades e não com aqueles defeitos.

Tenho certeza que este Congresso de Controle Público mostrará exatamente este caminho, que afinal está escrito em nossa bandeira e não tem merecido a devida atenção nos últimos tempos: ordem e progresso. 

Saulo Ramos

Fonte IBDP