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O novo capítulo da responsabilidade civil dos notários e registradores públicos: a Lei 13.286/2016 e a necessidade do fim da novela

ANO 2016 NUM 197
Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)
Pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York). Doutor em Direito pela UVA/RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio de Janeiro (IDAERJ). Professor Adjunto de Direito Administrativo do IBMEC. Professor de Direito Administrativo da EMERJ e do CURSO FORUM. Professor dos cursos de Pós-Graduação da FGV e Cândido Mendes. Advogado, árbitro e consultor jurídico. Sócio fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. www.professorrafaeloliveira.com.br


24/06/2016 | 8725 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

O tema da responsabilidade civil dos notários e registradores, que sempre foi objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial, recebeu novo capítulo com a promulgação da Lei 13.286 em 10/05/2016, que promoveu (i) a alteração do art. 22 da Lei 8.935/1994 para estabelecer a responsabilidade civil subjetiva dos notários e oficiais de registro (art. 2) e (ii) fixar o prazo prescricional de 3 (três) anos a pretensão de reparação civil, contado o prazo da data de lavratura do ato registral ou notarial (art. 2, parágrafo único).

No presente ensaio, o foco será a análise da juridicidade da primeira alteração, especialmente a constitucionalidade da imposição legislativa da responsabilidade civil subjetiva dos notários e registradores.

Inicialmente, é oportuno destacar que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado por delegação legal do Poder Público (art. 236, caput, da CRFB e Lei 8.935/1994) e o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público, na forma do art. 236, § 3.º, da CRFB.

O § 1º do art. 236 da CRFB, por sua vez, remete ao legislador a tarefa de disciplinar a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos.

Até a promulgação da Constituição de 1988, o art. 28 da Lei 6.015/1973 (Lei dos Registros Públicos) estabelecia a responsabilidade pessoal e subjetiva dos oficiais de registro.

Sob a égide da Constituição de 1988, o art. 22 da Lei 8.935/1994, alterado pela Lei 13.137/2015, consagrou a responsabilidade civil objetiva dos notários e oficiais de registro, assegurado o direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos seus prepostos.

Com a alteração promovida pela Lei 13.286/2016, o art. 22 da Lei 8.935/1994 passou a adotar a responsabilidade subjetiva (dolo ou culpa) dos notários e registradores, mantendo a possibilidade de direito de regresso.

A nova disposição legal vai ao encontro do disposto no art. 38 da Lei 9.492/1997 que também prevê a responsabilidade civil subjetiva dos Tabeliães de Protesto de Títulos, assegurado o direito de regresso.

É possível perceber, desde logo, que, ao menos no campo da legislação infraconstitucional, a matéria foi uniformizada em favor da responsabilidade civil subjetiva dos notários e registradores.

Não obstante isso, as controvérsias em torno do tema devem permanecer, uma vez que a questão envolve a compatibilidade dos citados diplomas legais com os arts. 37, § 6º, e 236, caput, da CRFB.

A controvérsia doutrinária sobre a responsabilidade dos notários e registradores, bem como do Estado, pelos danos causados a terceiros, se justifica pela dificuldade no enquadramento dos notários e registradores (serventias extrajudiciais) na regra do art. 37, § 6.º, da CRFB, e/ou na respectiva caracterização como agentes públicos ou delegatários de atividades públicas (pessoas de direito privado que prestam serviços públicos).

Na primeira hipótese, a responsabilidade do Estado seria direta e objetiva e a dos respectivos agentes públicos seria subjetiva. No segundo caso, os notários e registradores, assim como os demais delegatários de serviços públicos, responderiam pessoalmente e de forma objetiva, subsistindo a responsabilidade subsidiária do Estado.

A primeira linha de entendimento sustenta a responsabilidade direta e objetiva do Estado, uma vez que os notários e registradores exercem função pública, mediante aprovação em concurso público, razão pela qual se enquadram no conceito de agente público (STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 6. ed., São Paulo: RT, 2004. p. 577). Haveria, ainda, responsabilidade pessoal e subjetiva dos notários e registradores. A vítima pode acionar o Estado e este tem a ação regressiva em face do titular do cartório; ou a vítima pode acionar diretamente o titular do Cartório, que terá ação regressiva contra seu funcionário causador do dano (art. 22 da Lei 8.935/1994, antes da alteração promovida pela Lei 13.286/2016; art. 38 da Lei 9.492/1997 e art. 37, § 6.º, da CRFB).

De outro lado, parcela da doutrina advoga a responsabilidade pessoal e objetiva dos notários e registradores, em razão da prestação de serviço público delegado, e subsidiária do Estado, na forma do art. 37, § 6.º, da CRFB e art. 22 da Lei n.º 8.935/1994, antes da alteração promovida pela Lei 13.286/2016 (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 22. ed., São Paulo: Malheiros, 1997. p. 75-76; CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed., São Paulo: Atlas, 2007. p. 255).

Por fim, alguns autores sustentam a responsabilidade solidária e objetiva dos notários, registradores e Estado, na forma do art. 37, § 6.º, da CRFB e art. 22 da Lei 8.935/1994, antes da alteração promovida pela Lei 13.286/2016 (CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3. ed., São Paulo: RT, 2007. p. 266).

O STF ainda não fechou a questão sobre a controvérsia, encontrando-se pendente de julgamento o recurso extraordinário que teve a repercussão geral sobre a matéria reconhecida (RE 842846 RG/SC, Rel. Min. Luiz Fux, DJe-225 17/11/2014).

Cabe registrar, nesse ponto, a existência de acórdãos da 2ª Turma da Suprema Corte no sentido da responsabilidade direta e objetiva do Estado pelos danos causados pelos notários e registradores, assegurado o direito de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa (STF, 2ª Turma, RE 209.354 AgR/PR, Rel.  Min. Carlos Velloso, DJ 16/04/1999, p. 19; STF, 2ª Turma, AI 522.832 AgR/MS, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe-055  28/03/2008; STF, 2ª Turma, RE 551.156 AgR/SC, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe-064  03/04/2009; STF, 2ª Turma, RE 518.894 AgR/SP, Rel. Min. Ayres Britto, DJe-183 23/09/2011).

O STJ, por sua vez, possui decisões conflitantes, ora reconhecendo a responsabilidade direta e objetiva do Estado (STJ, 2.ª Turma, AgRg no REsp 1.005.878/GO, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 11/05/2009), ora afirmando a responsabilidade pessoal e objetiva dos notários e registradores e subsidiária do Estado (STJ, 1.ª Turma, AgRg no REsp 1377074 / RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 23/02/2016; STJ, 2.ª Turma, REsp 1.087.862/AM, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 19/05/2010, Informativo de Jurisprudência do STJ n. 421).

De nossa parte, sempre sustentamos que os notários e registradores, de um lado, possuem responsabilidade primária e objetiva pelos danos causados a terceiros, e, de outro lado, o Estado possui responsabilidade subsidiária, quando insuficientes os recursos dos delegatários para indenizar a vítima (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 4. ed., São Paulo: Método, 2016. p. 758/760).

O tratamento, a nosso ver, deve ser análogo ao dispensado à responsabilidade por danos causados pelas concessionárias de serviços públicos. A atividade delegada é exercida por conta e risco do delegatário, que possui, portanto, responsabilidade pessoal e direta pelos danos gerados no exercício da função.

Nesse caso, a responsabilidade é do notário e do registrador, e não do cartório, tendo em vista a ausência de personalidade jurídica das serventias extrajudiciais.

Registre-se, ainda, que, ao contrário dos servidores públicos, que são remunerados pelo próprio Estado (recursos orçamentários) e estão submetidos à hierarquia administrativa, os notários e registradores são remunerados por meio de emolumentos devidos pelos usuários das serventias, bem como são fiscalizados pelo Poder Judiciário.

Por esta razão, a fixação da responsabilidade civil subjetiva no art. 22 da Lei 8.935/1994, alterada pela Lei 13.286/2016, e no art. 38 da Lei 9.492/1997, contraria, em nosso juízo, o disposto nos arts. 37, § 6º, e 236, caput, da CRFB.

De fato, a alteração promovida pela Lei 13.286/2016 adicionou novo capítulo à questão, mas é preciso que a Suprema Corte escreva o final da novela, garantindo segurança jurídica ao tratamento da responsabilidade civil dos notários, registradores e Estado, o que pode ocorrer quando do julgamento do RE 842846 RG/SC, com repercussão geral.



Por Rafael Carvalho Rezende Oliveira (RJ)

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