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O Estatuto jurídico das empresas estatais (Lei 13.303/2016) sob a ótica da Constituição da República de 1988

ANO 2016 NUM 223
Maria Tereza Fonseca Dias (MG)
Mestre e doutora em Direito Administrativo pela UFMG. Professora do Departamento de Direito Público da UFMG e da Universidade Fumec. Advogada e consultora. Foi fundadora e coordenadora do Núcleo de Mediação e Cidadania da UFOP (2008-2011)


29/07/2016 | 17057 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

Contando com quase uma centena de dispositivos, a Lei n. 13.303/2016, publicada no DOU de 1º de julho de 2016 - data de sua entrada em vigor - promete alterar significativamente o regime jurídico das empresas estatais e uniformizar o regime jurídico das pessoas jurídicas de direito privado criadas no âmbito das entidades federativas com o escopo de exploração de atividades econômicas.

A referida lei era esperada desde a Emenda Constitucional n. 19/1998, que alterou o art. 173 da Constituição de 1988, dando nova redação ao § 1º do referido dispositivo. Nele ficou estabelecido que deveria ser editado, por lei, o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços.

A seguir será analisada a estrutura da Lei n. 13.303/2016 à luz deste comando constitucional e seus respectivos incisos. O escopo central desta análise é verificar se a lei editada observa ou não – e em que medida – a Constituição de 1988.

O estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, deveria, entre outros conteúdos, dispor sobre:

I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;

A “função social da empresa pública e da sociedade de economia mista” foi a denominação dada ao Capítulo III, do Título I, da Lei n. 13.303/2016, cuja disciplina encontra-se no art. 27 da lei. O dispositivo traça as diretrizes gerais e critérios para definir o escopo da função social das empresas, que é, segundo a lei, a realização do interesse coletivo. E a realização deste interesse coletivo, dar-se-á, por sua vez, mediante: o alcance do bem-estar econômico; a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos pelas empresas estatais; o acesso dos consumidores aos seus bens e serviços e o desenvolvimento e emprego de tecnologia brasileira. Neste dispositivo há também a previsão (art. 27, §3º) da possibilidade de ser celebrado convênio ou contrato de patrocínio das empresas estatais com pessoa física ou com pessoa jurídica para promoção de atividades culturais, sociais, esportivas, educacionais e de inovação tecnológica, observados os critérios e procedimentos estabelecidos na lei, sobretudo às normas de licitações e contratos.

A  “fiscalização pelo estado e pela sociedade” foi a denominação do Capítulo III, do Título II, da Lei n. 13.303/2016 compreendendo os artigos 85 a 90. Esses dispositivos tratam do controle externo e interno das empresas estatais das três esferas de governo, responsáveis pelo controle contábil, financeiro, operacional e patrimonial das estatais, como já era previsto nos art. 70; 71 e 74 da Constituição de 1988 mas foi detalhado e explicitado no Estatuto. Houve previsão de controle das sociedades de economia mista transnacionais (art. 85 § 3º.). Além disto, foram estabelecidas regras de transparência quanto às informações que deverão ser disponibilizadas aos órgãos de controle, a saber (art. 86): a) as informações relativas a licitações e contratos constarão de bancos de dados eletrônicos atualizados e com acesso em tempo real; b) as demonstrações contábeis auditadas serão disponibilizadas no sítio eletrônico da empresa ou da sociedade na internet; c) as atas e demais expedientes oriundos de reuniões, ordinárias ou extraordinárias, dos conselhos de administração ou fiscal deverão ser disponibilizados sempre que solicitados, porém o acesso será restrito e individualizado aos órgãos de controle; d) as informações que sejam revestidas de sigilo bancário, estratégico, comercial ou industrial serão assim identificadas, a partir de critérios estabelecidos em regulamento, punindo-se o servidor que, ao ter acesso a elas, promova a sua divulgação indevida; e) as informações completas e atualizadas sobre a execução de contratos e do orçamento deverão ser disponibilizadas para conhecimento público, por meio eletrônico, mensalmente (art. 88).

Em que pese todas essas novas regras quanto ao exercício do controle interno e externo das empresas estatais, o art. 89 e 90 procuraram preservar a autonomia das estatais, ao dispor que “[...] as ações e deliberações do órgão ou ente de controle não podem implicar interferência na gestão das empresas públicas e das sociedades de economia mista a ele submetidas nem ingerência no exercício de suas competências ou na definição de políticas públicas.”

A lei tratou, portanto, de implementar mecanismos que possibilitem e agilizem o exercício do controle sem comprometer a autonomia das estatais para o desempenho da atividade econômica.

II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.

A Lei n. 13.303/2016, neste aspecto, poderia ter previsto de maneira mais explícita, os elementos descritos no inciso II, do § 1º, do art. 173 da CR/1988 acima transcrito. A definição deste regime próprio, entretanto, é depreendida da lei, a partir do momento em que, ao estabelecer as especificidades que afetam regras de direito privado (notadamente quanto ao regime societário dessas empresas) e as derrogações de direito público (notadamente no tocante às licitações e contratos), o conteúdo do regime remanescente das empresas estatais exploradoras de atividades econômicas fica sendo predominantemente privado quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Neste aspecto pode ser levantada a discussão do regime jurídico das empresas estatais prestadoras de serviço público, que possuem maior influência do regime publicístico em virtude da jurisprudência dos tribunais superiores. A lei procura dar esta resposta logo no caput do art. 1º ao estabelecer a abrangência geral da lei, que alcança “[...] toda e qualquer empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União ou seja de prestação de serviços públicos.” Em suma, pretende a lei tratar a atividade econômica como gênero, dos quais seriam espécies: a atividade econômica em sentido estrito, a atividade econômica sob regime de monopólio e a prestação de serviços públicos.

Considerando ainda o fato de que pode remanescer diferenças de regime entre empresas estatais, foi editada a regra do art. 8º, § 2º, que exige a transparência acerca de eventuais diferenças com o regime jurídico das demais empresas privadas. Determina o dispositivo?

“Quaisquer obrigações e responsabilidades que a empresa pública e a sociedade de economia mista que explorem atividade econômica assumam em condições distintas às de qualquer outra empresa do setor privado em que atuam deverão: I - estar claramente definidas em lei ou regulamento, bem como previstas em contrato, convênio ou ajuste celebrado com o ente público competente para estabelecê-las, observada a ampla publicidade desses instrumentos;

II - ter seu custo e suas receitas discriminados e divulgados de forma transparente, inclusive no plano contábil.”

Conclui-se, portanto que, em que pese não ter sido explícita, foi definida a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas às estatais, com as ressalvas da Lei n. 13.303/2016.

III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;

Esta talvez tenha sido a maior preocupação do estatuto jurídico da empresa pública e da sociedade de economia mista, haja vista que a lei dispensou 56 dos seus 97 artigos a tratar deste assunto. Ao mesmo tempo que afastou as normas gerais de licitações e contratos administrativos - notadamente da Lei n. 8.666/1993 – o regime de licitações e contratações das estatais identifica-se e consolida diversas normas já conhecidas da legislação administrativa, tornando o procedimento bem mais objetivo daqueles que já são conhecidos. As normas gerais de licitações e contratos administrativos editadas anteriormente serão agora aplicáveis quase exclusivamente para os órgãos da administração direta e entidades da administração indireta com personalidade jurídica de direito público. Exceção foi feita no estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e suas subsidiárias quanto às normas penais da Lei Geral de Licitações e contratos administrativos, por força do que determina o art. 41 da Lei n. 13.303/2016, a saber: “Aplicam-se às licitações e contratos regidos por esta Lei as normas de direito penal contidas nos arts. 89 a 99 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993”.

As disposições referentes as licitações e contratos foram previstas nos arts. 28 a 84 da lei, contando com a seguinte estrutura e principais previsões:

·         Da exigência de licitação e dos casos de dispensa e de inexigibilidade (art. 28 a 30);

·         Disposições de caráter geral sobre licitações e contratos (art. 31 a 41);

·         Das normas específicas para obras e serviços (art. 42 a 46);

·         Das normas específicas para aquisição de bens (art. 47 e 48);

·         Das normas específicas para alienação de bens (art. 49 e 50);

·         Do procedimento de licitação (art. 51 a 62), contemplando as seguintes fases (art. 51): preparação; divulgação; apresentação de lances ou propostas, conforme o modo de disputa adotado; julgamento; verificação de efetividade dos lances ou propostas; negociação; habilitação; interposição de recursos; adjudicação do objeto; homologação do resultado ou revogação do procedimento; e critérios de julgamento das propostas (art. 54): menor preço; maior desconto; melhor combinação de técnica e preço; melhor técnica; melhor conteúdo artístico; maior oferta de preço; maior retorno econômico; melhor destinação de bens alienados.  Quanto a habilitação, foram previstas as seguintes possibilidades (art. 58): exigência da apresentação de documentos aptos a comprovar a possibilidade da aquisição de direitos e da contração de obrigações por parte do licitante; qualificação técnica, restrita a parcelas do objeto técnica ou economicamente relevantes, de acordo com parâmetros estabelecidos de forma expressa no instrumento convocatório; capacidade econômica e financeira; recolhimento de quantia a título de adiantamento, tratando-se de licitações em que se utilize como critério de julgamento a maior oferta de preço. Observa-se que as regras procedimentais trataram de compilar as diversas possibilidades já previstas tanto na Lei n. 8.666/1993, quanto na lei do pregão (Lei n. 10.520/2001); na lei do RDC (Lei n. 12.462/2011); na Lei Geral de Concessões e Permissões (Lei n. 8.987/1995) e na lei das PPPs (Lei n. 11.079/2004).

·         Dos procedimentos auxiliares das licitações (art. 63 a 67): pré-qualificação permanente; cadastramento; sistema de registro de preços; catálogo eletrônico de padronização.

·         Da formalização dos contratos (art. 68 a 80);

·         Da alteração dos contratos (art. 81)

·         Das sanções administrativas (art. 82 a 84), compreendendo (art. 83): advertência; multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato; suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a entidade sancionadora, por prazo não superior a 2 (dois) anos.

IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;

Esta previsão foi disciplinada no Capítulo II, do Título I, da Lei n. 13.303/2016, tendo sido o segundo assunto mais detalhado e desenvolvido na lei, em seus artigos 5º a 26.

O Capítulo II, denominado “Regime societário da empresa pública e da sociedade de economia mista”, contém a seguinte estrutura:

I - Normas Gerais (art. 5º a 13), que tratam de estabelecer os critérios obrigatórios para a edição do estatuto interno das companhias, que deverá observar (art. 6º.): regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno, composição da administração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção. As diretrizes traçadas neste dispositivo demonstram clara preocupação com os mecanismos de governança e transparência das empresas estatais.

II - Acionista controlador (art. 14 e 15), tratando de suas atribuições e responsabilidades;

III – Administrador (art. 16 e 17). Podem ser indicados ou eleitos entre os empregados públicos da estatal. Entre os indicados, a lei determina, entre outras exigências, que a escolha dos seus administradores seja feita entre cidadãos de reputação ilibada, notório conhecimento e experiência profissional pregressa (art. 17).

IV - Conselho de Administração (art. 18 a 21, sendo este último dispositivo vetado). Estabelece outras atribuições ao Conselho, além das competências previstas no art. 142 da Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações). E também garante a participação, no Conselho de Administração, de representante dos empregados e dos acionistas minoritários;

V - Membro Independente do Conselho de Administração (art. 22). O dispositivo  estabelece que: “O Conselho de Administração deve ser composto, no mínimo, por 25% (vinte e cinco por cento) de membros independentes ou por pelo menos 1 (um), caso haja decisão pelo exercício da faculdade do voto múltiplo pelos acionistas minoritários, nos termos do art. 141 da Lei n.6.404, de 15 de dezembro de 1976.”

VI – Diretoria (art. 23);

VII - Comitê de auditoria estatutário (art. 24 e 25), instituído como órgão auxiliar do Conselho de Administração;

VIII - Conselho Fiscal (art. 26), com a seguinte regra de escolha de membro (art. 26, §1º): Podem ser membros do Conselho Fiscal pessoas naturais, residentes no País, com formação acadêmica compatível com o exercício da função e que tenham exercido, por prazo mínimo de 3 (três) anos, cargo de direção ou assessoramento na administração pública ou cargo de conselheiro fiscal ou administrador em empresa.

Conforme estrutura apresentada, as preocupações centrais da lei, quanto ao regime societário das estatais, foi estabelecer a sua governança corporativa e regras de transparência; delimitar as distinções do seu regime societário e esmiuçar as regras de escolha de seus dirigentes, limitando o acesso de pessoal não capacitado para as funções diretivas, conselhos de administração e fiscal.

V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

Em que pese não terem sido fixados mandatos para os administradores, os critérios de avaliação e responsabilidade deles serão aferidos, notadamente, conforme descrito no item anterior, no Código de Conduta e Integridade (art. 9º. §1º) a ser editado e devidamente acompanhado por auditoria interna e Comitê de Auditoria Estatutário (art. 9º, III), sem prejuízo das demais responsabilidades descritas no Estatuto da companhia e demais regras pertinentes (administrativas, penais e civis).

Conforme descrito, a lei editada tratou de observar os comandos constitucionais acerca da edição do Estatuto Jurídico das empresas estatais. Quanto a sua estrutura, portanto, houve estrita observância do que preconizado pela EC n. 19/1998, lamentando-se, tão somente o demasiado atraso do legislador, na disciplina do tema, que poderia ter evitado o desgoverno de muitas estatais.



Por Maria Tereza Fonseca Dias (MG)

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