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"Mutação Inconstitucional" e a decisão condenatória do impeachment: o legado didático de Lewandowski

ANO 2016 NUM 265
Ana Paula Oliveira Ávila (RS)
Mestre (2001) e Doutora (2007) em Direito pela UFRGS. Professora Titular de Direito Constitucional dos cursos de Graduação e do Programa de Mestrado em Direitos Humanos do UniRitter.


28/09/2016 | 6329 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

O Ministro Ricardo Lewandowski, no comando do processo de impeachment recentemente julgado no Senado Federal, legou aos professores de Direito Constitucional um excelente exemplo do que seria uma mutação inconstitucional. Ao atribuir ao texto do art. 52, parágrafo único, uma interpretação contrária à literalidade do próprio texto, o então Presidente do STF, violando o compromisso publicamente assumido no ato de sua posse, de respeitar e defender o texto constitucional, cometeu um claríssimo desvio de finalidade do instituto da mutação constitucional.

O episódio, já cansativamente explorado pelos veículos de comunicação, traz de novo à tona o problema da “mutação constitucional”. Trata-se de um importante instituto cuja finalidade envolve algo extremamente necessário às ciências sociais, que é a capacidade de adaptação das normas às demandas políticas, sociais e culturais verificadas no mundo real, algo que só opera validamente dentro de certos limites. Visando à segurança jurídica, as normas constitucionais nascem vocacionadas à longevidade, ou seja, sua permanência duradoura na ordem jurídica é desejada como meio para que as instituições se tornem estáveis e fortalecidas ao longo do tempo. No entanto, tendo por referencial um sistema essencialmente dinâmico (as relações sociais), as normas constitucionais precisam de mecanismos de atualização para que não se tornem obsoletas em face da realidade que pretendem regular. Nesse contexto é que se insere a mutação constitucional.

Em nosso sistema, a atualização pode ocorrer com alterações formais ao texto da Constituição, mediante o exercício do poder constituinte derivado, consubstanciado na aprovação de emendas constitucionais pelo Poder Legislativo nos termos do art. 60 da Constituição brasileira de 1988. Este dispositivo estabelece dois turnos de discussão e aprovação das emendas, por maioria qualificada de três quintos, garantindo a rigidez e supremacia da Constituição em nosso sistema.

Também podem ocorrer alterações informais pela via interpretativa, nos casos em que a jurisprudência fixa uma nova compreensão e concretização (law in action) do dispositivo que, em seu enunciado (law in  books), mantem seu texto intacto. A ideia não é de todo nova: em 1910 Roscoe Pound escreveu um texto clássico, intitulado “Law in Books and Law in Action”(44 American Law Review 12, 1910), evidenciando que a prática dos tribunais exigia adaptações que nem sempre coincidiam plenamente com o texto normativo proposto. Na visão de Pound, tais adaptações informais seriam preferíveis à alteração formal da lei porque garantiriam sua estabilidade, evitando alterações que atendessem a casuísmos momentâneos (“they granted the law ought not to change. Changes in law were full of danger” - p. 12).

A este tipo de alteração informal deu-se o nome de mutação constitucional (cf. Hesse, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Sérgio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991). O tema se desenvolveu significativamente na Alemanha, onde teve início o movimento de superação do paradigma metodológico do estrito positivismo de interpretação literal das leis. Além disso, a linguagem empregada nos textos constitucionais do pós-guerra favoreceu uma “abertura linguística” que ensejou a interpretação evolutiva desenvolvida pelas Cortes Constitucionais, sendo a atuação do Tribunal Constitucional Alemão paradigmática aos estudos contemporâneos de direito constitucional.

Dentro desse novo paradigma metodológico, o texto da norma continua sendo o ponto de partida da interpretação jurídica, mas a fixação do seu sentido pelo intérprete passa a abranger também a consideração dos valores, interesses e fatos presentes no momento da incidência, mantendo a segurança nas relações jurídicas e, de certa forma, a controlabilidade das decisões. Com isso fica clara a assertiva de Lênio Streck de que “o processo interpretativo implica sempre redefinições” e a “a hermenêutica jurídica salta do paradigma reprodutivo para o paradigma produtivo” (Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – uma Nova Crítica do Direito.  2. Ed, Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.595 e 597). Para Streck, “não restam dúvidas sobre o fato de que as decisões/sentenças interpretativas, aditivas ou redutivas são criadoras de Direito. Isto porque toda norma é sempre resultado da interpretação de um texto, com o que há sempre um processo de produção/adjudicação de sentido (Sinngebubng), e não de reprodução de sentido (Auslegung)” (p. 593, grifos do autor).

Sobre a interpretação e aplicação das normas constitucionais, Friedrich Müller (precursor no tema) esclarece: não é somente o dever-ser – o programa normativo – que contribui para a decisão do caso, mas também, no que diz respeito a uma série de normas, igualmente a estrutura material do seu âmbito de aplicação, i.e., da parcela de realidade social relacionada com a norma – o domínio da norma, ou âmbito normativo (Discours de la méthode juridique. Tradução de Olivier Jouanjan. Paris: PUF, 1993, pp. 106). Deste modo, a norma teria seu enunciado concreto constituído após o cotejo entre o texto abstratamente considerado (dado linguístico) e o fato concreto que sofre sua incidência (dados da realidade). Destaca-se nesse processo de decisão dos casos concretos o papel fundamental exercido pelo intérprete da norma, que passa a exercer um papel ativo na construção da premissa maior, necessária para a implementação do raciocínio silogístico que diz o Direito para o caso.

Todos esse avanços que viabilizaram a conformação da norma à realidade subjacente foram fundamentais para o reconhecimento da categoria da “mutação” das normas constitucionais, pois no cerne da mutação está uma alteração fática (no contexto social) que implica uma alteração no sentido tradicionalmente atribuído à norma por meio da interpretação. Essa permeabilidade das normas à realidade subjacente pode ser ilustrada por meio do clássico exemplo de mutação operada pela Suprema Corte norte-americana em matéria de igualdade e segregação racial. Por mais de 50 anos, a Suprema Corte firmara o entendimento de que a prática de segregação não atentava contra a Constituição. Em Plessy v. The State of Louisiana, de 1896, a Corte considerou que a mera separação dos passageiros negros e brancos em vagões distintos não implica a inferiorização da raça negra e nem viola a equal protection of the law, porque os vagões operavam nas mesmas circunstâncias e condições. Este caso conduziu ao que veio a ser chamado de doutrina dos “iguais, mas separados” – separate but equal –,  segundo a qual a segregação era válida desde que os serviços e locais acessíveis a brancos e negros tivessem a mesma qualidade. Porém, em 1951 a Suprema Corte reviu este entendimento, no conhecido caso Brown v. The Board of Education, em que a Suprema Corte operou a mutação constitucional em decisão que, por 9-0, considerando a política de segregação racial nas escolas intrinsecamente desigual à luz da mesma equal protection of the law prevista na Constituição estadunidense. Assim, sem que qualquer alteração fosse necessária ao texto da Constituição, modificou-se completamente o entendimento a respeito dele à luz da evolução social.

Esse exemplo revela que a mutação constitucional contempla a ideia de continuidade da ordem jurídica, mas também contém a ideia de adequação e correspondência do sistema ao estado de coisas subjacente. Porém, e aqui passaremos a analisar a extrema audácia interpretativa do Ministro Lewandowski, parece intuitivo que, por mais “plástico” que seja o sistema, nem todo resultado interpretativo há de ser por ele tolerado.

Operar com normas jurídicas envolve, antes de mais, o uso de regras semânticas, concernentes ao sentido das proposições elaboradas pelos participantes do discurso racional, e pragmáticas, dizendo a respeito ao comportamento ético dos participantes neste processo (ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica – Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros. São Paulo: Landy, 2000. p.242). Para que uma decisão jurídica guarde coerência com os princípios estruturantes do Estado de Direito (notadamente: democracia, separação dos poderes, legalidade, igualdade e segurança jurídica), as regras argumentativas conferem uma preferência aos argumentos textuais e sistemáticos (nesta ordem), em detrimento de outros subjetivos, de cunho pragmático ou utilitarista que possam, indevidamente, embasar uma decisão. A esse respeito, Robert Alexy propõe a seguinte regra argumentativa (J.7): “os argumentos que exprimem uma ligação com o teor literal da lei ou com a vontade do legislador histórico prevalecem sobre os demais, a não ser que se possam apresentar outros motivos racionais que concedam prioridade a outros argumentos” (Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2005. p. 40).

É claro que uma interpretação gramatical com foco no texto depende da sua estrutura semântica, algo que pode oferecer maior dificuldade nas normas mais abertas (por exemplo, aquelas que preveem princípios jurídicos), dada a fluidez em seu sentido prima facie enquanto norma de decisão. Por isso os argumentos sistemáticos e contextuais serão preferíveis nesses casos, o que faz recair sobre o intérprete o ônus de conjugar a norma objeto da interpretação com outras normas do sistema a serem consideradas. Há, no entanto, certo consenso no sentido de que o resultado hermenêutico não deve contrariar a literalidade do texto, que, como visto, é o ponto de partida da interpretação. Uma adaptação de sentido que contrariasse o texto da Constituição deixaria de ser uma mutação constitucional para se tornar uma “mutação inconstitucional” (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2a Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129).

Voltando ao caso Lewandowski, eventuais dificuldades interpretativas não se põem em relação ao texto contido na regra do art. 52, parágrafo único, da Constituição Federal. O dispositivo estabelece que “nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

A norma constitucional é claríssima ao estabelecer que a condenação  no processo de impeachment consiste na perda do cargo com inabilitação para o exercício de função pública. Lewandowski, ao determinar que a votação dos senadores sobre a condenação fosse desmembrada de modo a admitir o afastamento do cargo sem a consequência que a Constituição determinava –a inabilitação para função pública– foi muito além de uma atualização necessária ao texto, para modificar de forma antidemocrática, inconstitucionalissimamente, a norma constitucional. Passou de “guardião” a “dono” da Constituição, sem qualquer norma ou justificativa válida a amparar-lhe tal atitude. É revoltante observar um magistrado que desempenha um poder deferido pelo próprio texto constitucional voltar-se de forma tão espúria contra ele.

Apesar de tudo, Lewandowski, que é professor da Faculdade de Direito da USP, foi bastante didático e legou-nos bons exemplos de sala de aula: demonstrou com clareza como NÃO se deve interpretar o Direito. E já que a aula é de interpretação, caberia até questionar se o Ministro, com sua condução do processo de votação do impeachment, não correu o risco de cometer, ele próprio, algum dos crimes de responsabilidade previstos na mesma Lei do Impeachment (Lei 1.079/50), art. 8o, ns. 2  (“tentar mudar por violência a Constituição Federal”), 7 (permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública) e 8 (deixar de tomar, nos prazos fixados, as providências determinadas por lei ou tratado federal e necessário a sua execução e cumprimento”), combinados com art. 9o, n. 4 (“expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição”) e art. 13, n. 1 (“são crimes de responsabilidade dos Ministros de Estado os atos definidos nesta lei, quando por eles praticados ou ordenados”). Deixo a pergunta no ar, como faria qualquer professor mais provocativo.

O que nos interessa saber é que a atitude de Lewandowski foi muito além daquilo que conhece por mutação constitucional, um recurso indispensável para a manutenção da ordem constitucional e sempre sujeito a limites. O episódio tem o efeito pedagógico de alertar que, se a mutação constitucional é remédio ou veneno, é algo que dependerá da dose empregada pelo intérprete – e a decisão do Ministro, como se vê, destilou veneno. Por isso, ao tratarmos de interpretação constitucional, não podemos ignorar os cuidados necessários para impedir que o intérprete chegue a soluções hermenêuticas contrárias ao sentido literal do texto, agindo como se fosse o poder constituinte. Nesse ponto, resgata-se a advertência de Konrad Hesse: a preservação da titularidade do poder constituinte e da soberania popular exigiriam, num tal caso, a própria alteração do texto constitucional pelas vias formais, pois “se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura-se inevitável” (op. cit., p. 23).



Por Ana Paula Oliveira Ávila (RS)

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