Colunistas

Licitações na União Europeia (VI): compreensão da vantajosidade, critérios de julgamento e análise de custo do ciclo de vida do objeto contratado

ANO 2017 NUM 319
Thiago Marrara (SP)
Professor de Direito Administrativo da USP-Ribeirão Preto. Doutor em Direito Público pela Ludwig Maximilians Universität - LMU de Munique, Alemanha. Editor da Revista Digital de Direito Administrativo (RDDA) da USP. Consultor.


17/01/2017 | 4033 pessoas já leram esta coluna. | 2 usuário(s) ON-line nesta página

Objetivo fulcral de qualquer modelo estatal de licitações é a vantajosidade. Por meio de processos de seleção legalmente disciplinados, almeja-se não somente garantir a isonomia entre agentes de mercado, mas encontrar para o Estado-contratante a “melhor” proposta. Contudo, ilude-se quem acha que a seleção da melhor proposta é condicionada por meros critérios de julgamento da licitação. Esses critérios exercem um papel, é verdade, mas eles não afastam outros elementos que impactam o valor do contrato e da contratação.

O preço do contrato não é definido só pelo custo do bem ou serviço. O grau de concorrência e os riscos assumidos pelo agente de mercado diante do regime administrativo de contratação configuram outros fatores relevantes de precificação. Esses elementos, porém, relacionam-se à vantajosidade em sentido restrito, vinculada ao valor do contrato.

Ocorre que o valor do contrato não se confunde com o valor de contratar. Em realidade, o valor de contratar representa a somatória de valor do contrato, custos do contrato, custos da licitação e externalidades do contrato. Nesse contexto, surge uma vantajosidade alargada, indicativa da melhor proposta de contratação, e não de contrato. Nessa perspectiva, outros fatores ganham relevo no estudo dos modelos licitatórios, como a eficiência dos processos administrativos, a capacidade de o contrato contribuir com políticas públicas etc.

Tendo em vista que essas e outras variáveis condicionam aquilo que se chama de “vantajosidade” e desafiam, no cenário tecnológico e econômico atual, a presunção de que a licitação baseada em preço constitui o caminho mais adequado para o “melhor negócio” estatal, nesse novo texto da série sobre licitações na União Europeia, examinam-se os critérios de julgamento que a Diretiva n. 2014/24 ofereceu aos órgãos públicos que desejam firmar contratos de bens, serviços e obras. Com essa exposição, objetiva-se revelar como a vantajosidade passou a ser compreendida no direito comunitário atual.   

Nos modelos licitatórios, tradicionalmente se toma a fase de julgamento (ou “adjudicação”, no direito europeu) como o momento determinante à eleição da proposta mais vantajosa dentre aquelas trazidas ao certame. Não por outro motivo, na Diretiva 2014/24, o julgamento foi disciplinado com cuidado nos artigos 67 a 69. O art. 67 trata dos “critérios de adjudicação”; o art. 68 cuida do “cálculo dos custos do ciclo de vida” e o art. 69, das “propostas anormalmente baixas”. Vejamos.

Como critério geral de julgamento das licitações sujeitas ao direito europeu em todos os Estados-membros, a Diretiva estabelece o da “proposta economicamente mais vantajosa”, sem prejuízo de disposições normativas nacionais relativas ao preço de certos bens ou serviços. Em seguida, esclarece o art. 67, 2, que a vantajosidade deverá ser identificada “com base no preço ou custo, utilizando uma abordagem de custo-eficácia, como os custos do ciclo de vida”, e “pode incluir a melhor relação qualidade/preço”, avaliada segundo critérios que abordem aspectos qualitativos, ambientais e/ou sociais ligados ao objeto do contrato público em causa.

A partir da interpretação deste mandamento central, embora não haja qualquer listagem na Diretiva, conclui-se que o julgamento no âmbito das licitações de contratos de serviços, bens e obras poderá seguir as seguintes estratégias: 1) análise exclusiva de preço; 2) análise exclusiva de custo-eficácia; 3) análise combinada de preço/custo ou qualidade e 4) análise exclusiva de qualidade.

A despeito dessa variedade, a Diretiva abre aos Estados membros a possibilidade de vedar a licitação com foco exclusivo no preço ou custo como critério de julgamento de modo geral ou em determinadas entidades ou tipos de contratos. As licitações baseadas em puro preço podem ser excluídas dos ordenamentos de acordo com uma decisão do legislador de cada país-membro, revelando que o direito europeu não considera a mera análise de preço como o critério por essência garantidor da vantajosidade. Diversamente, inexiste opção de afastar licitações baseadas em critérios qualitativos.

Desde que não seja excluído pelo ordenamento nacional, sempre que se empregar o julgamento por preço, as autoridades deverão combater preços demasiadamente baixos, seja porque eles poderão esconder estratégias predatórias em desfavor da concorrência ou porque espelharão um cálculo incorreto do valor do objeto a se contratar – hipótese em que, posteriormente, a esperada execução contratual estará em risco.

A legislação europeia, porém, afastou-se de qualquer tentativa de definir a priori o preço inexeqüível – ou “anormalmente baixo” (na redação oficial da Diretiva) – por meio de fórmulas econômicas ou percentuais sobre preços de mercado, preços médios ou preços de outros licitantes. Não há método nem percentual normatizado, deixando-se bastante espaço para o exame da inadequação do valor ofertado pela autoridade pública.

Diante de indícios de preço irrazoavelmente baixo, o órgão contratante requisitará explicações ao respectivo licitante e pedirá, por exemplo: dados econômicos sobre a fabricação do produto, a prestação do serviço ou a construção; esclarecimentos sobre as soluções técnicas adotadas; informações acerca da originalidade do objeto e do cumprimento das obrigações do art. 18, 2 da Diretiva (que trata do respeito às normas ambientais, sociais e laborais) e de seu art. 71 (referente à subcontratação), além de esclarecimentos sobre recebimento eventual de auxílio estatal pelo licitante.

A solicitação de explicações configura um dever da autoridade pública, de sorte que não se poderá excluir o licitante questionado antes de sua manifestação. Somente se as provas ofertadas pelo proponente não explicarem os preços ou custos extremamente baixos é que sua proposta poderá ser excluída e o licitante desclassificado. Ressalte-se: como a Diretiva utilizar o verbo “poder”, em geral, entende-se que a exclusão está sob discricionariedade do órgão público. Excepcionalmente obrigatória será a exclusão: 1) quando se confirmar violação de normas ambientais, sociais, trabalhistas e outras referentes ao art. 18, 2 da Diretiva ou 2) quando se verificar que o apoio estatal recebido pelo licitante é incompatível com as normas que regem o mercado interno.

Apesar das várias normas sobre preços, a Diretiva n. 2014/24 se destaca pela intensa valorização dos critérios qualitativos de julgamento. Nas licitações combinadas, faculta-se ao órgão público estabelecer um preço fixo para o contrato já no ato convocatório. Nesta hipótese, abre-se a competição para que os licitantes ofereçam a melhor solução qualitativa a partir do valor dado.

Conquanto os ordenamentos nacionais possam estabelecer normas sobre os critérios qualitativos, o legislador europeu registrou três blocos de aspectos ilustrativos que poderão ser considerados no julgamento das propostas:

  • a) qualidade, designadamente valor técnico, características estéticas e funcionais, acessibilidade, concepção para todos os utilizadores, características sociais, ambientais e inovadoras, negociação e respectivas condições;
  • b) Organização, qualificações e experiência do pessoal encarregado da execução do contrato em questão, caso a qualidade do pessoal empregue tenha um impacto significativo no nível de execução do contrato; ou
  • c) Serviço e assistência técnica pós-venda, condições de entrega, tais como a data de entrega, processo de entrega e prazo de entrega ou de execução.

Nesses exemplos, observa-se, em primeiro lugar, a valorização das licitações sociais e ambientais. Pela Diretiva, a proteção ambiental e a promoção de valores sociais podem permear não somente a descrição do objeto e os requisitos de habilitação, mas também os critérios de julgamento. Em segundo lugar, inúmeros elementos subjetivos que classicamente se restringem à fase de habilitação são alçados à posição de fator decisivo para a escolha do contratado.

Quando empregados os aspectos qualitativos exemplificados ou outros que órgão público deseje escolher de acordo com o direito nacional para basear seu julgamento, o imprescindível é que se garanta sua vinculação com o objeto do contrato. No entanto, não há necessidade de que essa ligação seja imediata. A Diretiva, a esse respeito, é clara ao permitir que se considerem no julgamento: a) o processo específico de produção, fornecimento ou negociação das obras, produtos ou serviços; ou b) processo específico em relação à outra fase do seu ciclo de vida, mesmo que estes fatores não façam parte da sua substância material.

Com isso, em uma licitação para a aquisição de computadores ou carros, por exemplo, a qualidade dos serviços pós-venda ou certas características do processo de fabricação, de disposição final ou reciclagem do bem poderiam constar como critérios de julgamento da licitação. Em todo e qualquer caso, o que importa é a relação de pertinência do critério com o objeto, de modo mediato ou imediato, a publicidade dos critérios no ato convocatório e sua razoabilidade, de sorte a não se impedir a concorrência efetiva no certame.

Um último aspecto do julgamento que merece destaque diz respeito ao critério de custo. Nas hipóteses ele for eleito pelo órgão contratante, a Diretiva exige a realização de uma abordagem de custo-eficácia do objeto licitado e, para tanto, sugere o cálculo dos custos do ciclo de vida do objeto contratado. Exatamente por isso, no art. 68, o legislador europeu considerou relevante esclarecer em que consiste esse cálculo e qual sua abrangência.

Na hipótese de julgamento baseado no custo-eficácia pelo método indicado no art. 68, o órgão contratante deverá realizar um cálculo sobre parte ou sobre a totalidade dos custos relevantes do ciclo de vida de um produto, serviço ou obra a se contratar. De acordo com o mandamento comunitário, dividem-se os custos em dois grandes blocos. O primeiro abarca os suportados pelo órgão contratante ou outros usuários do objeto contratado, incluindo desde custos de aquisição, utilização (consumo de energia, e.g.), manutenção, até os custos de “fim de vida” (recolhimento, reciclagem etc.). O segundo bloco envolve os custos “imputados a externalidades ambientais ligadas ao produto, serviço ou obra durante seu ciclo de vida, desde que seja possível determinar e confirmar o seu valor monetário” (por exemplo, custo de emissão de poluentes, de atenuação de alterações climáticas etc.).

Ao se valer da análise de custos do ciclo de vida do produto ou serviço, o órgão contratante assume a responsabilidade de informar, nos atos convocatórios, os dados que os proponentes deverão apresentar e a metodologia a ser empregada no cálculo. Quanto à metodologia para avaliar custos de externalidades ambientais, a Diretiva prescreve o respeito a certas condições, quais sejam: a) os critérios escolhidos pelo órgão contratante deverão ser “objetivamente verificáveis e não discriminatórios”; b) a metodologia de cálculo deverá ser acessível a todos; e c) os dados exigidos poderão ser fornecidos com esforço razoável, inclusive por licitantes de países terceiros que sejam partes do GPA da OMC ou de outros acordos internacionais que vinculam a União Europeia em matéria licitatória.  

Para além destas e de outras inovações pontuais, é simples constatar o que demonstram as normas comunitárias sobre análise de custos de vida do objeto contratado, sobre critérios qualitativos e sobre a faculdade de as leis nacionais vedarem licitações baseadas exclusivamente em preço. O legislador europeu superou a visão limitada que tomava como certa a vinculação entre menor preço e contrato mais vantajoso! Dos critérios e normas abordados, sobressai a concepção de vantajosidade dinâmica, complexa e alargada. Daí ser imprescindível garantir maior flexibilidade aos órgãos públicos na escolha dos parâmetros de julgamento, permitindo-lhes considerar, a depender do contexto, não só o preço, mas os custos do objeto ao longo e após a execução do contrato, sua durabilidade e de que forma e com que intensidade a proposta eleita contribuirá com o sucesso de outras políticas públicas, sobretudo nos campos ambiental e social.



Por Thiago Marrara (SP)

Veja também