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O Coronavírus, a emergência sanitária e a responsabilidade dos administradores públicos

ANO 2020 NUM 444
Rafael Arruda (GO)
Doutorando em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – Portugal. Procurador do Estado de Goiás. Diretor de Relações Institucionais do Instituto de Direito Administrativo de Goiás – IDAG. Advogado – sócio em Lara Martins Advogados


30/03/2020 | 3466 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

Em matéria de controle público, há a suposição relativamente comum, especialmente sob a perspectiva jornalística, de que a atuação da esfera controladora tende sempre a ser “melhor” que aquela outrora exercida pelo gestor público. Vários fatores conduzem a este resultado. O mais expressivo deles reside no fato de que a crítica posterior, naturalmente acompanhada por mais elementos, dados e informações, tende sempre a ganhar maior ressonância e impressão de acurácia, e isso num contexto em que certo movimento expansionista da atividade fiscalizatória e sindicante do agir administrativo mostra sempre a sua face, segundo a lógica do “quanto mais controle, melhor”, conforme, aliás, já identificado por Gustavo Leonardo Maia Pereira em artigo de opinião a respeito (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/o-dilema-do-controle-publico-quanto-mais-melhor-04122019).

Ora, todos reconhecem a importância dos controles públicos, que necessitam ser sempre qualificados e aperfeiçoados, para a boa e eficiente alocação de recursos públicos escassos. Numa democracia, o respeito ao dinheiro público constitui, com efeito, imprescindível mecanismo legitimador do poder. 

E qual a relevância do tema para o momento? É que em razão dos grandes e importantes desafios impostos aos Poderes Públicos para fazer frente à pandemia do novo Coronavírus (Covid-19), os administradores públicos têm tido de, a todo instante, tomar decisões que, segundo sua perspectiva, melhor consultem ao interesse público. Realizar aquisições de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública, tudo mediante dispensa de licitação, constitui providência que secretários municipais e estaduais, prefeitos, governadores, ministros de Estado e outros ordenadores de despesas estão, um pouco por todos os lados, a adotar nesta oportunidade, com amparo, sobretudo, nas novas cláusulas de abertura em matéria de licitações e contratações trazidas pela Lei federal nº 13.979/20 e, mais recentemente, pela Medida Provisória nº 926/20. Com efeito, a situação exige tomada de decisões rápidas e assertivas.

Neste cenário, sobremodo recomendável é que os administradores públicos promovam a edição de atos administrativos consistentemente fundamentados, dando conta das razões pelas quais adotam determinada providência, tudo acompanhado da correlata documentação. Não pode ser deslembrado que a fundamentação constitui a pedra-de-toque do Direito Administrativo contemporâneo. Na lúcida sentença de Juarez Freitas (Direito fundamental à boa Administração Pública, 3 ed. Malheiros: São Paulo, 2014), é por meio da motivação que se conforma o espaço demasiado fluido das vontades meramente particulares, inconciliáveis com a índole democrática do Estado constitucional. É com a justificação que se pode, quase sempre, desvendar a ocorrência de desvio de poder: os vícios acontecem usualmente quando a fundamentação se eclipsa.

Bem, e por que deve o administrador de hoje adotar cautelas frente ao controlador de amanhã? Porque fiscalizar a “obra pronta” por parte dos órgãos de controle – Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas etc. –, com apontamento de falhas e defeitos, costuma ser menos dispendioso. Difícil é para o controlador se colocar no lugar do gestor público que, em momento de tensão, pânico e agonia, teve de se esforçar para tomar a melhor decisão em nome do interesse público, em contexto marcado por escassez de recursos, déficit de mão de obra e desprofissionalização da função pública, ausência de tempo para adequado planejamento e por aí afora.

Daí que, na forma do art. 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), na redação conferida pela Lei federal nº 13.655/18, deverão ser considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo. “Documentar” este momento por que passam o país e os governos assume, portanto, superlativa importância, notadamente dos fatores e das condições que, em nome de um princípio de cautela geral, levam as autoridades públicas nacionais a tomar medidas tendo em vista realidades mais duras e aspectos dolorosos vivenciados por nações estrangeiras no combate à pandemia. Em matéria de contratações públicas, tais medidas acautelatórias de direito não se restringem aos agentes públicos: também os particulares que, nessa ambiência, contratam com as Administrações devem adequadamente se resguardar de futuras injunções do controle público, a fim de preservar a contextualização do momento presente, cuja memória não pode se perder.

Ainda que a LINDB preveja que a decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deva levar em conta as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente (art. 22, § 1º), admitindo-se que tais contingências, anos depois, possam constituir meras reminiscências mentais particulares, a documentação viva do drama, da pressão e dos obstáculos há de se fazer presente hoje, a fim de, com tal esforço, incentivar o controlador a, no futuro, minimamente colocar-se no lugar do administrador, em verdadeiro exercício de alteridade, conforme, a propósito, já tive a ocasião de assentar nesta Coluna (http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Rafael-Arruda-Oliveira/lei-federal-n-13-655-18-um-convite-ao-exercicio-da-alteridade): a tentativa é a de encorpar o senso de responsabilidade dos controladores que atuam em momento  póstero.

Assim, se o olhar do controle tende a definir, perante a opinião pública, quem o administrador é, para que este transcenda, e surpreenda, essa dependência do olhar perturbador, é que, por puro pragmatismo, preservar documentalmente da maneira mais completa possível o atual momento histórico deve constituir o esforço dos gestores públicos, como agentes bem intencionados e dispostos a levar a cabo as providências necessárias à superação dos infortúnios causados pela pandemia da Covid-19, a fim de que, no futuro, a hoje recorrente banalidade da falta de deferência dê lugar ao respeito e ao prestígio àqueles que, premidos pela ação do tempo e das circunstâncias fáticas da gestão pública, têm – ou tiveram – de tomar decisões dilemáticas e importantes. A sociedade não necessita neste momento de gestores públicos acuados, hesitantes e inseguros, mas, sim, de agentes que, confrontados por emergências sanitárias e calamidades públicas, ousem avançar e transformar, a despeito dos obstáculos, da burocracia e das dificuldades que circundam o agir administrativo.



Por Rafael Arruda (GO)

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