Colunistas

O Golpe no Estado Social

ANO 2016 NUM 178
Ricardo Lodi Ribeiro (RJ)
Mestre em Direito Tributário pela UCAM. Doutor em Direito e Economia pela UGF. Professor Adjunto de Direito Financeiro da UERJ. Diretor da Faculdade de Direito da UERJ. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário (SBDT)


27/05/2016 | 8614 pessoas já leram esta coluna. | 4 usuário(s) ON-line nesta página

Com a ascensão do vice-presidente Michel Temer ao comando do país, a farsa do impeachment aprovado sem crime de responsabilidade se transformou no golpe parlamentar como anunciamos na nossa coluna do mês de abril (http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Ricardo-Lodi-Ribeiro/da-farsa-do-impeachment-ao-golpe-parlamentar), que não se desferiu somente contra um governo eleito, mas contra o Estado Democrático de Direito em sua acepção que vai além dos limites formais que regulam o processo de votação e impedimento do presidente da república.  Dirigiu-se contra a vontade majoritária do povo brasileiro consolidada há mais de duas décadas, bem como contra os direitos por este conquistados.

É que em nosso país, por vontade dos eleitores reiteradamente manifestada desde a eleição de 1994, vamos resistindo à tendência à hiperglobalização, implementada sem sucesso alhures,  representada pela dominação do mercado sobre todas as esferas sociais.  Essa resistência democrática deu-se principalmente a partir da consagração dos direitos fundamentais pela Constituição de 1988, relativos à saúde, à previdência e assistência social, à educação, à cultura, à proteção aos direitos humanos, das mulheres, dos negros, da comunidade LGBT, ao fomento à ciência e tecnologia nacionais etc.

Todo esse rol de direitos parece ruir em poucos dias a partir da ascensão provisória de um vice-presidente que, em princípio, só ficaria até 180 dias, mas que parece pretender inaugurar uma nova era de velhas ideias neoliberais destinadas a  um Brasil que não existe mais, que, desde a crise econômica de 2008, estão em franco declínio em todo o mundo, e que de tão retrogradas sequer foram submetidas à apreciação dos eleitores por qualquer dos candidatos à Presidência da República no pleito de 2014, sobretudo na chapa vencedora.  Mas essas velhas ideias não vêm de agora e nem foram aqui criadas.

Em 1944, Karl Polanyi escreveu a obra A Grande Transformação, defendendo que o liberalismo tinha promovido, pela primeira vez na história, a separação do sistema econômico do sistema social, subordinando este em relação ao primeiro.  Era a ilusão da criação de uma sociedade de mercado, com a subordinação do sistema social aos interesses deste.

Porém, se a ideia de sociedade de mercado de Polanyi parecia muito datada em relação à primeira metade do século XX, ainda muito marcada pelo liberalismo clássico anterior ao New Deal e ao keynesianismo, que conseguiram introduzir a harmonização dos interesses da sociedade aos anseios do mercado, a virada neoliberal do final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980, a partir de uma análise em perspectiva após mais de três décadas, nos revela que o pensador húngaro não foi só um historiador do liberalismo, mas nos legou verdadeira premonição sobre os anos futuros, com a ascensão do neoliberalismo, em uma nova grande transformação.

Mais recentemente, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, na obra “Globalização e Consequências Humanas“ sustentou que a separação entre economia e política e a proteção da primeira contra a intervenção regulatória da segunda, resulta na perda de poder da sociedade como um agente efetivo. Na mesma toada o pensamento do sociólogo alemão Ulrich Beck, em “A Europa Alemã – A Crise e as Novas Perspectivas de Poder”, que considerou serem os agentes econômicos socialmente cegos que dominam o debate social por meio dos seus conselheiros dotados de um analfabetismo sóciopolítico.  Mas nem sempre foi assim. 

No período que se seguiu aos esforços de reconstrução da II Guerra Mundial, até meados da década de 1970, as economias ocidentais desenvolvidas conheceram cerca de 30 anos de notável crescimento econômico baseados nos esforços de todos os segmentos sociais destinados a evitar as catástrofes financeiras e humanas que ameaçaram o capitalismo nos anos de 1930, seja para evitar os conflitos geopolíticos que levaram ao conflito bélico em escala global, seja, no plano doméstico, para servir de alívio aos cidadãos mais pobres, com o estabelecimento de um ambiente de harmonia entre trabalhadores e empresários, em uma correta combinação de Estado, mercado e instituições democráticas, a fim de garantir paz, inclusão, bem-estar e estabilidade, evitando o desenvolvimento de projetos políticos influenciados pela União Soviética durante o período de Guerra Fria.

De acordo com geógrafo britânico David Harley, o traço em comum do modelo implementado nos EUA e em vários países europeus que adotaram o Welfare State era a aceitação da ideia de que caberia ao Estado buscar o pleno emprego, o crescimento econômico e o bem-estar dos seus cidadãos, e de que o poder estatal deveria ser harmonizado com a atuação do mercado e, se necessário, nele intervindo ou a ele substituindo, para alcançar esses fins, com a adoção de políticas fiscais e monetárias keynesianas para suavizar os ciclos de negócios e assegurar o pleno emprego, em um compromisso de classe entre capital e trabalho como garantia da paz e da tranquilidade domésticas.

Mesmo nos Estados Unidos, onde o Estado Social não chegou tão longe quanto na Europa, havia um consenso político, incluindo os republicanos, a respeito das conquistas sociais do New Deal. Um registro curioso que retrata bem esse consenso político entre democratas e republicanos é a carta escrita em 1954 pelo presidente republicano, Dwight D. Eisenhower, remetida ao seu irmão Edgar N. Eisenhover condenando o futuro de qualquer partido político que pretendesse abolir a previdência social, o seguro-desemprego e eliminar a legislação trabalhista e as políticas agrícolas.  Por sua vez, o também republicano Richard Nixon, que chegou a dizer que “agora somos todos keynesianos”, propôs a assistência médica universal, a garantia de renda mínima e aprovou um aumento de tributos que incluía a criação de um imposto mínimo alternativo para reprimir a evasão fiscal dos americanos ricos, bem como leis ambientais avançadas para a época.

Porém, no final dos anos de 1960, o Estado do Bem-Estar Social começou a entrar em crise, com o desemprego e a estagflação aumentando em toda a parte.  A receita fiscal de vários países começou a cair, em virtude do desaquecimento da atividade econômica enquanto os gastos sociais disparavam ainda embalados pelo crescimento dos anos anteriores. A situação agravou-se sobremaneira com o embargo dos países produtores da OPEP – Organização dos Países Produtores de Petróleo, em 1973, em protesto contra o apoio dos EUA a Israel na Guerra Árabe-israelense do Yom Kippur.  A crise do petróleo elevou o preço do barril em 400%, jogando os EUA e a Europa em recessão, o que desestabilizou economia mundial. A resposta que os governos socialdemocratas europeus deram à crise econômica dos anos de 1970 baseou-se em mais controle e regulação na economia.  Mesmo nos EUA, o Congresso democrata impôs ao Presidente Nixon o aumento de regulação em todas as áreas, do meio ambiente ao direito do consumidor, passando pelos direitos civis.

O resultado foi a polarização entre aqueles que defendiam a regulação socialdemocrata e o planejamento central, muitas vezes implementada por partidos de esquerda que por razões pragmáticas desagradavam os seus eleitores com a austeridade fiscal imposta pela crise, e os interesses dos que defendiam a liberdade de atuação para o mercado.  O fim do ciclo de desenvolvimento econômico dos trinta anos de ouro do Estado Social acabou levando ao predomínio do segundo grupo.

Nesse contexto, os conservadores britânicos voltam ao poder com Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979, e os republicanos com Ronald Reagan, nos EUA, em 1981.  No entanto, tais resultados eleitorais não mais reproduziram o quadro das décadas anteriores em que a alternância entre os partidos não se traduzia em alteração das políticas keynesianas.  Ao contrário, houve uma verdadeira revolução que acabou por recolocar os interesses do mercado no centro da ação social a partir da desregulamentação, da flexibilização de direitos trabalhistas, das privatizações e do combate à progressividade tributária, no que se convencionou chamar de neoliberalismo.

Para David Harvey, o neoliberalismo é uma teoria das práticas políticas-econômicas que defende que o bem-estar humano é mais bem promovido com fundamento nas liberdades e capacidades empreendedoras individuais, a partir de uma estrutura institucional marcada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. Nesse ideário, o papel do Estado é o de apenas criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas, não devendo se aventurar para além dessas tarefas.  Já os economistas franceses Gérard Duménil e Dominique Lévy advertem que o neoliberalismo acabou servindo de estratégia das elites empresariais para expansão de seu poder em um mundo globalizado.

No entanto, não se pode dizer que essas ideias surgiram ao longo da crise econômica dos anos de 1970. Ou que tiveram geração espontânea.  Embora o Estado Social sempre tivesse tido os seus críticos, tendo os debates econômicos dos últimos cem anos gravitado em torno da dicotomia entre liberais e desenvolvimentistas, a partir de 1947, o pensamento dos críticos da intervenção estatal passou a se apresentar de forma mais organizada em torno do Mont Pelerin Society, criada por Friedrich von Hayek, e integrada, dentre outros por Ludwig von Mises, Milton Friedman e Karl Popper.  Os integrantes da entidade se designavam como liberais em razão do compromisso com a defesa da liberdade pessoal, da propriedade privada e da liberdade de mercado contra o intervencionismo estatal, a partir da ideia advinda de Adam Smith de mão invisível do mercado como melhor recurso de mobilização dos instintos humanos.  Por isso, são chamados de neoliberais.

A cruzada do Mont Pelerin contra o keynesianismo contou com o generoso financiamento e apoio político de grupos corporativos, por meio de think tanks que se mantiveram à margem do pensamento político e econômico até a crise financeira dos anos de 1970, quando passaram ao centro da luta de ideias. 

Passou a gozar de respeitabilidade acadêmica depois de Hayek ganhar o Prêmio Nobel de Economia em 1974 e de Friedman também ganhá-lo em 1976.  Com isso, o neoliberalismo, em especial a sua versão monetarista da Escola de Chicago, com George Stigler e Milton Friedman, que defendem a estabilidade da economia a partir das forças espontâneas do mercado, propugnava a restrição da atuação estatal ao controle da moeda e das taxas de juros.

Baseados nos elementos que tinham se constituído no segredo do seu sucesso inicial, os economistas e formuladores de políticas públicas empurraram o modelo neoliberal além de seus limites, o que resultou em uma série de decepções. A globalização financeira acabou acarretando instabilidade ao invés de maior investimento e crescimento mais rápido. Dentro dos países, a globalização gerou desigualdade e insegurança em vez de levantar todos os barcos. Houve sucessos estupendos neste período de China e Índia em particular. Mas, estes foram os países que optaram por jogar o jogo globalização não pelas novas regras, mas por regras de Bretton Woods. Em vez de abrir-se incondicionalmente ao comércio e finanças internacionais, eles perseguiram estratégias mistas com uma forte dose de intervenção do Estado para diversificar as suas economias. Entretanto, países que seguiram as receitas-padrão, tais como aqueles da América Latina, definharam. E, assim, a globalização tornou-se uma vítima do seu próprio sucesso original.

A ilusão de que uma maré que sobe e levanta todos os barcos, em verdade se baseia na crença de que os problemas remanescentes da miséria serão resolvidos por si só, uma vez que o desenvolvimento econômico se disseminará por toda parte e que, se a maré alta não levanta seu barco, a culpa provavelmente é sua, sendo as forças da globalização fortes o suficiente para que todos se beneficiem desde que se comportem bem, como destaca o economista norte-americano Jeffey Sachs em “O Fim da Pobreza – Como Acabar com a Miséria Mundial nos Próximos 20 Anos.”

Os efeitos da globalização sobre a classe trabalhadora tradicional dos países capitalistas avançados foram bastante adversos. O deslocamento de empresas para com as nações de baixos salários, o efeito de alterações técnicas da economia de trabalho, a desindicalização dos trabalhadores, a concorrência de trabalho a partir de importações realizadas em país de baixos salários, e o crescimento da imigração dos países do Terceiro Mundo e ex-países socialistas, limitaram a demanda para o trabalho, inviabilizaram quaisquer aumentos de salários, e reduziu a participação do trabalho na renda nacional.

Os mercados de trabalho nos países industrializados têm se polarizado: observa-se uma co-existência de demanda relativamente forte e altos salários para executivos, profissionais altamente especializados e empregados no setor de serviços.  Um grande número de empregos de classe média e de trabalhadores manuais foi deslocado por mudanças técnicas baseadas em competências que a troca de tarefas administrativas e de escritório para o trabalho baseado em computador. Além disso, cadeias de produção globais centradas em baixos salários se afastaram das economias capitalistas avançadas.

No mundo em desenvolvimento, as elites econômicas têm crescido mais fortemente com a distribuição de renda sendo concentrada no topo. Em países de rápido crescimento, como a China, a Índia, e alguns latino-americanos, como o Brasil, muitas pessoas deixaram a pobreza, considerando apenas a renda, juntando-se às fileiras da chamada nova classe média, ainda muito vulnerável a choques financeiros, no mercado de trabalho e na saúde.

          Por isso, parece assistir razão ao economista turco Dani Rodrikn na obra “The Globalization Paradox: Democracy and the Future of the Worrld Economy”, quando afirma que Estado-nação, democracia e globalização constituem um trio instável no século XXI, devendo um dos três ceder aos outros dois, pelo menos em parte.  Para ele, o trilema político fundamenta da economia mundial deriva da impossibilidade de obter simultaneamente a democracia, a determinação nacional e globalização econômica. Caso se deseje aprofundar ainda mais a globalização, é preciso desistir de qualquer ideia ligada ao Estado-nação ou às políticas democráticas. Se queremos manter e aprofundar a democracia, temos de escolher entre o Estado-nação e integração econômica internacional. E se nós queremos manter o Estado-nação e de autodeterminação, temos de escolher entre o aprofundamento da democracia e o aprofundamento da globalização. Nossos problemas têm suas raízes na nossa relutância em enfrentar essas escolhas inelutáveis.

Mesmo que seja possível avançar tanto a democracia e a globalização, o trilema sugere que esta exige a criação de uma comunidade política global, o que é muito mais ambicioso do que qualquer coisa que tenhamos visto até hoje ou que seja provável experimentar em breve.  Essa convivência entre democracia e globalização exigiria uma regulação global, apoiada por mecanismos de responsabilização que vão muito além do que temos neste momento. Governança global democrática deste tipo é ainda uma quimera, pois existem muitas diferenças entre os Estados-nação, para que as suas necessidades e preferências possam ser acomodadas dentro das regras e instituições comuns. Seja qual for a governança global que se puder conceber, estará relacionada a uma versão limitada da globalização econômica. A grande diversidade que marca nosso mundo atual torna hiperglobalização incompatível com a democracia.

Então é preciso fazer algumas escolhas. Para Rodrik, a democracia e determinação nacional devem triunfar sobre a hiperglobalização, tendo as democracias nacionais que ter o direito de proteger os seus arranjos sociais, e quando isto não se encaixar em certas exigências da economia global, é esta última que deve ceder.

E isso não é o fim da globalização, uma vez que o fortalecimento das democracias nacionais irá de fato colocar a economia mundial sob fundamento mais seguro e mais saudável. E é aí que reside o paradoxo final da globalização. Uma fina camada de regras internacionais que deixam espaço de manobra substancial por parte dos governos nacionais é uma globalização melhor, que pode lidar com os seus efeitos nefastos, mas preservando seus benefícios econômicos substanciais. Precisamos da globalização inteligente, não da globalização máxima.

O dado mais trágico sobre o atual arranjo institucional mundial é que em decorrência dos efeitos nocivos da globalização sobre os trabalhadores e da flexibilização no mercado de trabalho, a seguridade social acaba por ser onerada ainda mais.   É que os trabalhadores não qualificados dos países industrializados têm que competir com os trabalhadores de países em desenvolvimento, que quase sempre aceitam receber uma fração dos salários percebidos pelos primeiros.  Nesse cenário, é natural que os empregadores desejem que os seus trabalhadores aceitem cortes mais significativos nos seus salários, o que quase sempre está por trás dos reclames pela maior flexibilidade do mercado de trabalho.

Paradoxalmente, a resposta dos Estados nacionais ao fenômeno tem também debilitado a capacidade e a vontade do Estado de prestar tais proteções. É voz comum no debate público que o aumento de concorrência associado à globalização requer que se restrinjam as proteções sociais a fim de tornar a economia mais ágil e adaptada às circunstâncias da nova ordem internacional.  Deste modo, a globalização assimétrica leva os Estados a reduzirem a tributação e as proteções ambientais e trabalhistas em relação ao trabalho não qualificado, cortando impostos sem conseguir compensar por outros meios as receitas fiscais.  Com a redução dessas, a globalização pressiona o Estado para reduzir déficits e redirecionar os gastos no sentido de atrair mais investimento privado à custa da inevitável redução das despesas do Estado Social.  A estratégia argumentativa para legitimar tal conduta consiste em convencer que todos nos beneficiaremos do crescimento, em uma versão atualizada da economia trickle-down.  Porém, como adverte  o Prêmio Nobel de Economia norte-amercino Joseph Stigliz, tal ideia não se mostrou correta pelo aumento das desigualdades ter sido tão significativo e o benefício para o crescimento ter sido tão tímido, que os efeitos negativos daquele anularam os efeitos positivos deste.

Deste modo, a globalização fragilizou uma das funções primordiais do Estado nacional, que permitiu que este promovesse a coesão social e o apoio interno à liberalização contínua durante todo o período pós-guerra, representada pelo atendimento das prestações sociais, negligenciadas pela tendência dos governos em utilizar seus poderes fiscais para isolar os grupos internos dos riscos excessivos do mercado, particularmente daqueles que têm origem externa.  Como bem observou Dani Rodrik, há uma “notável correlação entre uma exposição da economia ao comércio internacional e o tamanho da sua previdência social. ”

Na verdade, o efeito da hiperglobalização marcada pelo neoliberalismo parece ser justamente o aumento da desigualdade e da insegurança.  O aumento da insegurança diminui substancialmente a vontade dos indivíduos em desenvolver atividades de alto risco, ainda que com elevado retorno, o que inexoravelmente acarreta em redução do crescimento econômico.  Porém, ainda há um efeito econômico que vai além da insegurança comprometedora de um ambiente propício aos negócios em razão do aumento da desigualdade.  É a necessidade de ampliação de políticas distributivas a ser suportada pelos tributos, o que também acaba por onerar os negócios e reduzir a coesão social, como identifica Joseph Stigliz.

Nesse cenário dramático, se o desenvolvimento econômico escapa, pelas razões já apresentadas, do controle do Estado Nacional, as consequências do seu não atingimento, como o desemprego, a pobreza, a imigração, a violência urbana, têm o seu equacionamento exigido do Estado Social, cada vez mais frágil para atender a essa crescente demanda, o que gera crises políticas que colocam em perigo o futuro da democracia. Para a sua proteção dos seus interesses, os Estados Nacionais correm o risco de adotar medidas que possam acabar por afugentar o fluxo de capitais, gerando mais desemprego e miséria.  Por outro lado, como já restou demostrado, o desenvolvimento econômico gerado pelos investimentos estrangeiros pode promover mais exclusão social e concentração de renda, se não for coadunado com os interesses da maioria da população.

No plano externo, o resgate do reconhecimento da importância do papel do Estado decorre da recente crise das hipotecas subprime e profunda recessão daí decorrente. É por demais sabido que a economia mundial não caiu no mesmo precipício da Grande Depressão da década de 1930 pela intervenção do Estado não só na salvação dos bancos, mas no oferecimento de um vasto leque de compensação social como as proteções contra o desemprego, as intervenções no mercado de trabalho, o seguro-saúde, e o apoio com que as famílias puderam contar para mitigar os efeitos danosos da crise econômica.  Afinal, o Estado do bem-estar social é o outro lado da economia aberta, pois os mercados e os Estados são complementos em mais de um sentido.

Na América Latina, houve um grande incremento da desigualdade com a aplicação das políticas de austeridade ditadas pelo FMI e pelo Banco Mundial nos anos de 1990, cujo caso mais dramático foi o da Argentina onde mesmo com a Crise da Lei de Conversibilidade, o governo argentino esteve disposto a revogar contratos com eleitores, empregados domésticos, aposentados, governos provinciais, banco nacionais, de modo a não ignorar um centavo de suas obrigações para com os credores estrangeiros.

Contudo, a partir de 2000, começou-se a reverter esse quadro. No Brasil, em especial, a desigualdade tem recuado sensivelmente, tendo o coeficiente GINI, que mede a desigualdade de renda, diminuído de 0,59 para 0,5, entre 2002 a 2012, atingindo os patamares verificados nos anos de 1960.  .

Como alerta o economista britânico Anthony Atkinson, na obra “Desigualdade – O que pode ser feito”, as políticas de redução da desigualdade implementadas no continente latino-americano neste início de século têm em comum, independentemente das taxas de crescimento econômico e da orientação política dos governos, a combinação de mudanças nas rendas de mercado e a redistribuição expandida, por meio do aumento substancial do salário mínimo e da expansão da assistência social.

Contudo, em nosso país, todas essas políticas públicas estão ameaças de ser repentinamente subvertidas pelo governo interino, cujos novos ministros, em poucos dias, já questionam o direito universal ao SUS que não caberia no orçamento e à gratuidade nas Universidades Federais, defenderam a revogação da construção de casas populares do Programa Minha Casa Minha Vida, cortes no Bolsa Família, o aumento do tempo de contribuição e da idade mínima para a aposentadoria, a flexibilização da CLT, a criminalização dos movimentos sociais.  Algumas dessas declarações geraram tanta polêmica que tiveram que ser desmentidas pelo vice-presidente em exercício, que, no entanto, em seu primeiro dia, já extinguira os principais ministérios da área social, os inserindo como secretarias em ministérios caros ao mercado.  Assim, pavimenta-se a ponte para o passado, como se fosse possível aniquilar o Estado Social erigido pela Constituição de 1988, e o progresso humano conquistado nos últimos vinte anos pela sociedade brasileira a partir de suas próprias escolhas.  Mas é preciso avisar aos navegantes que não há como voltar ao passado, como se as duas últimas décadas não tivessem existido no Brasil, e como se a história mundial já não tivesse superado a ilusão de que o mercado é capaz de atender a todos os anseios da sociedade.

A fragilização do Estado Social a partir da ilusão de que a criação de um ambiente propício para os negócios levará ao desenvolvimento do país, ainda que a custa do aumento da nossa escandalosa desigualdade desestabilizadora da coesão e paz social, não é uma escolha do povo brasleiro e não se adequa às pautas valorativas consagradas constitucionalmente. Por isso, mais que um golpe contra o governo, há, com a ascensão do governo interino, um golpe contra o Estado Social, a partir da imposição de uma austeridade seletiva, que não deu certo em parte alguma, e que não questiona a destinação de quase 50% do orçamento federal ao pagamento da dívida pública com base na manutenção de uma taxa de juros que não tem paralelo no mundo civilizado e tampouco se justifica por uma inflação que não é de demanda.  Que se coaduna com um dos sistemas tributários mais iníquos do planeta, e com uma politica de subsídios tributários e creditícios a quem deles não precisa.  Ou seja, ao utilizar a crise fiscal para promover o aviltamento do Estado Social, sem legitimidade democrática para tanto, já que subvente as politicas públicas dos dirigentes eleitos, o que o governo interino faz é um golpe contra o povo.



Por Ricardo Lodi Ribeiro (RJ)

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