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Infraestrutura em Tempos de Crise: comentários sobre a MP 727, de 12/05/2016

ANO 2016 NUM 177
Fernando Menegat (PR)
Doutorando em Direito Administrativo pela USP. Professor de Direito Administrativo da Universidade Positivo (PR). Advogado em Curitiba-PR.


25/05/2016 | 5083 pessoas já leram esta coluna. | 1 usuário(s) ON-line nesta página

No mesmo dia em que tomou posse interinamente como Presidente da República, ante o afastamento de Dilma Rousseff por conta do impeachment admitido no Senado, Michel Temer fez publicar a Medida Provisória n. 727, de 12 de maio de 2016, criando o denominado Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). 

O PPI tem diversas finalidades, dentre as quais proporcionar a “ampliação e fortalecimento da interação entre o Estado e a iniciativa privada” (art. 1º) e a “expansão da infraestrutura pública” (art. 2º, II), “fortalecer o papel regulador do Estado” (art. 2º, V) e garantir estabilidade e segurança jurídicas, com a “mínima intervenção nos negócios e investimentos” (art. 2º, IV). 

Integrarão o PPI todos os empreendimentos públicos de infraestrutura devidamente definidos por Decreto (art. 4º), o que abrange tanto empreendimentos executados diretamente pela União (art. 1º, §1º, I) quanto empreendimentos executados pelos demais entes federativos, mas por ela fomentados (art. 1º, §1º, II), sem prejuízo do disposto no Programa Nacional de Desestatização (Lei n. 9.491/97).

Os empreendimentos infraestruturais atingidos pelo PPI são aqueles efetuados mediante celebração de um gênero contratual que a MP definiu como “Contratos de Parceria”. São características dos Contratos de Parceria, de acordo com o §2º do mesmo artigo:

(i) o fato de serem ajustes público-privados, ou seja, celebrados entre Poder Público e iniciativa privada;

(ii) o fato de serem celebrados em setores assim considerados estratégicos (setores de infraestrutura);

(iii) sua complexidade, derivada de diversos fatores como o volume de investimentos realizado, o longo prazo necessário à sua amortização, os elevados e cambiantes riscos envolvidos e demais elementos ínsitos aos contratos de longa maturação.

Como exemplos de Contratos de Parcerias, pode-se apontar: os contratos de concessão comum e de permissão de serviços públicos (Lei n. 8.987/95); os contratos de concessão patrocinada e administrativa (ou seja, as Parcerias Público-Privadas, conforme Lei n. 11.079/04); os contratos de concessão previstos na legislação setorial dos setores regulados, a exemplo dos contratos de partilha de produção no setor de petróleo (Lei n. 12.351/10); e o arrendamento portuário (Lei n. 12.815/13). No entanto, o rol não é taxativo: qualquer ajuste que, na prática, reúna as características apresentadas acima será, independentemente de seu rótulo, interpretado como Contrato de Parceria para fins de incidência do regramento da MP em questão.

Vários pontos positivos chamam atenção na MP em questão:

a) o foco na estabilidade e na máxima segurança jurídica a todos os agentes (públicos e privados) – art. 2º, IV e 3º, I e II;

b) a previsão do estabelecimento de políticas públicas de infraestrutura de longo prazo a nível federal, bem como de políticas públicas de fomento a projetos de infraestrutura estaduais e municipais – art. 4º, I e III;

c) a exigência de realização de planos, estudos de impacto regulatório e consultas públicas para implementação dos projetos de infraestrutura – art. 6º, I, II e IV;

d) a eliminação de barreiras burocráticas – art. 6º, VI e art. 18;

e) a articulação com o CADE e com os órgãos de controle – art. 6º, VII e VIII;

f) a criação de um Conselho do PPI, presidido pelo Presidente da República, que racionalizará a tomada de decisões na medida em que aglutinará as funções de outras instâncias decisórias criadas esparsamente: o conselho gestor das Parcerias Público-Privadas (Lei n. 11.079/04), o Conselho Nacional de Desestatização (Lei n. 9.491/97) e o Conselho Nacional de Integração das Políticas de Transporte (Lei n. 10.233/01) – art. 7º;

g) a criação do denominado Fundo de Apoio à Estruturação das Parcerias, constituído e administrado pelo BNDES, com natureza privada e patrimônio próprio, que terá por finalidade prestar serviços de estruturação de projetos a serem executados no âmbito do PPI, além de liberar recursos – art. 16;

h) a possibilidade de o Fundo de Apoio à Estruturação das Parcerias celebrar contratos com terceiros, de elevada especialização, para execução dos serviços de estruturação de projetos de sua incumbência, vedando que os contratados participem, direta ou indiretamente, da futura licitação a ser deflagrada para a celebração do Contrato de Parceria – art. 17 caput e §2º;

i) o expresso reconhecimento da importância dos empreendimentos privados executados sob regime de autorização administrativa regulatória, tanto que a MP afirma a incidência de seu regramento, no que couber, sobre tais empreendimentos que, ao que parece, foram também considerados infraestruturais – art. 21.

Algumas questões, no entanto, merecem crítica, como por exemplo:

a) enquanto a medida provisória não for convertida em lei, a eficácia dos dispositivos que reforçam a segurança jurídica, a estabilidade e o estabelecimento de políticas públicas de longo prazo não é plena;

b) a MP caminha mal ao afirmar, de forma lacunar, que o regime de contratação de terceiros pelo Fundo de Apoio à Estruturação das Parcerias será instituído “de acordo com a legislação aplicável” (art. 17, §1º), o que fatalmente importará, quando da constituição de referido regime (por Decreto), polêmica acerca da atração ou não da incidência da Lei n. 8.666/93;

c) a MP enquadra indevidamente a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), empresa pública criada conforme Lei n. 12.404/11, como “órgão”, vinculando-a à Secretaria Executiva do PPI (art. 20), padecendo de atecnia legislativa.

Neste último caso, há duas alternativas hermenêuticas. A primeira, mais provável, é considerar que a MP pretendeu manter o enquadramento legal da EPL como empresa pública, utilizando atecnicamente a expressão “órgão”, e apenas alterou a vinculação de referida entidade, que passou a ser a Secretaria Executiva do PPI. A segunda interpretação possível é de que a MP pretendeu efetivamente enquadrar a EPL como órgão subordinado à Secretaria Executiva do PPI – neste caso, deverá ser editada lei que autorize a extinção da EPL, integrando sua estrutura à Administração Direta.

Talvez o momento em que a MP 727 tenha sido mais problemática, a despeito de conter interessantes disposições, foi ao normatizar, nos artigos 13 e seguintes, a forma como se dá a estruturação de projetos para posterior licitação – procedimento que a MP denominou de “Estruturação Integrada”, definindo-o como “conjunto articulado e completo de atividades e serviços técnicos, incluindo estudos, projetos de engenharia, arquitetura e outros, levantamentos, investigações, assessorias, inclusive de relações públicas, consultorias e pareceres técnicos, econômico-financeiros e jurídicos, para viabilizar a liberação, a licitação e a contratação do empreendimento, segundo as melhores práticas e com transparência” (art. 14, §2º).

O art. 13 da MP começa bem: afirma que a Administração Pública pode abrir procedimento preliminar de seleção de projetos e estudos que subsidiarão a futura licitação para a celebração do Contrato de Parceria. Trata-se de procedimento já referido na Lei das Concessões (Lei n. 8.987/95, art. 21), aplicável às Parcerias Público-Privadas por força do disposto no art. 3º da Lei n. 11.079/04, e que foi recentemente regulamentado pelo Decreto n. 8.428/15 sob a denominação de “Procedimento de Manifestação de Interesse” (PMI). Previsão semelhante é extraída dos artigos 18 a 21 da Lei n. 13.019/14, cuja vigência se iniciou em janeiro de 2016, ao instituir o Procedimento de Manifestação de Interesse Social (PMIS) como “instrumento por meio do qual as organizações da sociedade civil, movimentos sociais e cidadãos poderão apresentar propostas ao poder público para que este avalie a possibilidade de realização de um chamamento público objetivando a celebração de parceria” (art. 18).

Ou seja: a MP aqui apenas reafirmou a possibilidade já ditada pelo ordenamento de o Poder Público, previamente à realização da licitação para celebração do Contrato de Parceria, buscar junto à iniciativa privada a realização de estudos e projetos necessários para subsidiar o futuro certame de escolha do seu parceiro.

Ocorre que o mesmo art. 13 da MP 727 apresenta disposições obscuras, que parecem inclusive conflitar com o restante da normatização realizada. Isso ocorre em dois momentos: (i) ao se afirmar que quaisquer interessados podem apresentar, “independentemente de autorização, seus projetos, levantamentos, investigações ou estudos” (grifo nosso); (ii) ao afirmar que é “vedado qualquer ressarcimento” pelos estudos apresentados, “na forma do art. 21 da lei 8.987, de 1995”.

Ora, a possibilidade de privados apresentarem estudos e projetos independentemente de autorização do poder público, para além de conflitar com o disposto no Decreto n. 8.428/15, que regulamenta o art. 21 da Lei n. 8.987/95, conflita com a própria MP 727, que logo a seguir, no art. 14, afirma que a estruturação de empreendimentos integrantes do PPI pode ocorrer de duas formas: mediante Procedimento de Autorização de Estudos (PAE), realizado no regime do art. 21 da Lei n. 8.987/95 (art. 14, I); ou mediante celebração de Contrato de Estruturação Integrada diretamente com o Fundo de Apoio à Estruturação das Parcerias, criado nos moldes do art. 16 da MP. Nesse sentido, parece contradizer-se a MP 727 ao afirmar, num primeiro momento, que quaisquer interessados podem apresentar projetos e levantamentos independentemente de autorização do poder público e, num segundo momento, afirmar que a estruturação de projetos dar-se-á ou nos termos do art. 21 da Lei n. 8.987/95 (é dizer: nos termos do Decreto n. 8.428/15, que regulamenta referido dispositivo e exige a expedição de autorização do Poder Público) ou mediante contrato celebrado diretamente com o Fundo administrado pelo BNDES.

De outro lado, a vedação ao ressarcimento pelos estudos apresentados é igualmente incompreensível, já que (i) o artigo 21 da Lei n. 8.987/95, expressamente referido como fundamento do art. 13 da MP, impõe o ressarcimento do autor dos estudos e projetos, ressarcimento esse efetuado pelo vencedor da licitação futura; (ii) a própria MP 727, no art. 14, §4º, afirma que o edital da licitação futura para celebração do Contrato de Parceria “poderá prever que, além de compensação das despesas, que o ressarcimento ao autorizado inclua uma recompensa pelos riscos assumidos e pelo resultado dos estudos”; (iii) a própria MP 727, no art. 16, caput, afirma que o Fundo de Apoio à Estruturação de Parcerias constituído pelo BNDES presta serviços de estruturação e de liberação de forma onerosa. É dizer: novamente cai em contradição a MP ao vedar, no seu art. 13, o ressarcimento do autor dos projetos selecionados, quando todo o restante do ordenamento jurídico (e da própria MP em referência) demandam o pagamento pelos estudos realizados, o qual é feito pelo licitante vencedor do certame futuramente deflagrado. E isso por uma razão óbvia: ninguém se interessaria em dispender tempo e recursos (humanos e financeiros) para elaborar estudos e projetos de forma gratuita.

De todo modo, superadas estas críticas, a MP disciplina, no tocante a esse procedimento de Estruturação Integrada, duas questões bastante interessantes.

A primeira delas diz respeito à inédita possibilidade de a Administração pública conferir autorização exclusiva a um particular para realização de estudos de estruturação integrada, contanto que o particular autorizado e aqueles por ele contratados para realizar os estudos expressamente renunciem ao seu direito (a) de participar na licitação futura para celebração do Contrato de Parceria, bem como (b) de figurarem como contratados do parceiro privado que for vitorioso no certame. Trata-se do constante do art. 14, §1º da MP, que destoa do regime do Decreto n. 8.428/15 porquanto neste as autorizações sempre são outorgadas sem caráter de exclusividade, conforme redação de seu art. 6º, I.

A inovação é interessante, mas deve ser interpretada com cautela: a exclusividade na outorga da autorização para a realização de estudos e projetos não significa a possibilidade de a Administração Pública direcionar a seleção dos particulares autorizados a realizar estudos apenas porque eles aceitaram não participar da futura licitação para outorga do Contrato de Parceria. Ao revés: a outorga de autorização com caráter de exclusividade apenas será válida se o interessado comprovar estar plenamente apto à realização dos serviços exigidos, mediante demonstração de sua experiência pretérita, da capacidade intelectual de sua equipe e de outros fatores que atestem de inquestionável e insuperável sua expertise. O raciocínio a ser utilizado é semelhante, mutatis mutandis, à contratação direta, por inexigibilidade de licitação, de serviços técnicos de natureza singular com profissional/empresa de notória especialização, prevista no art. 25, II e §1º da Lei n. 8.666/93.

A segunda questão refere-se à previsão explícita da possibilidade de o particular autorizado a realizar estudos de estruturação integrada auxiliar a Administração Pública “até a celebração da parceria”. Ou seja: o procedimento de estruturação integrada não se finaliza com a seleção dos estudos pelo Poder Público, podendo o particular seguir auxiliando o Poder Público até a finalização do futuro certame licitatório e a celebração do Contrato de Parceria. O privado que teve seus estudos e projetos selecionados pode seguir auxiliando o Poder Público de duas formas: seja fornecendo à Administração Pública novos estudos e subsídios (art. 14, §3º da MP), seja revisando, aperfeiçoando e complementando os estudos originais que foram aprovados (art. 14, §2º, parte final da MP). Trata-se de importante passo dado pela MP 727, que reforça o previsto no Decreto n. 8.428/15 (art. 1º, §2º e art. 4º, §6º).

Com vícios e virtudes, a Medida Provisória 727/2016 carreia diversas inovações no cenário do Direito Público – e, sobretudo, do Direito Administrativo – nacional. Sua conversão em lei será apenas o primeiro passo de uma longa caminhada para testar sua efetividade enquanto instrumento de desenvolvimento das infraestruturas no país em tempos de crise. 



Por Fernando Menegat (PR)

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